Fundamos a conjetura na semelhança dos dizeres “Alcabom Radião” com o título da tradução feita por Gerardo de Cremona do Commentarius in artem parvam, de Galeno, que muito divulgou o nome de Ali Abenriduan, e que foi impresso em Veneza, em 1496, com o título: Haly Eben Rodan, scilicet Rodohan Aegyptus, Comentarius….
Se esta identificação é exata e se se admite, em consequência, que Zurara conhecia os Comentários de Ali Abenriduan, parece forçoso concluir-se que o cronista alguma autoridade tinha para falar nos “que tem uistos os teistos de Tollomeo ou leerem per Almajesta» (hic, p. 51), pois separava na obra do grande tratadista os escritos astrológicos do tratado astronómico, e que, contra a opinião do Dr. Duarte Leite (hic, p. 52), não há desacerto em o considerar, pelo menos, leitor de um dos tratados astrológicos de Ptolomeu.
Finalmente, para concluir a resenha deste grupo de citações cumpre ainda notar a referência a Avicena (Ibna Sina).
O nome do subtilíssimo filósofo e enciclopédico sábio ocorre no final do cap. I da Crón. de Ceuta, no passo em que Zurara, pondo “fiuza em a deuinal madre”, em cuja “santissima pureza” D. João I sempre teve “singular deuaçam”, confia em que a alma do monarca “impetrara per mim tal graça que eu possa escreuer sua estoria segundo seus grandes merecimentos rrequerem. conheçendo que per mim nehuaa causa posso sem sua graça e ajuda, segundo he escripto per Avicena em sua metafisica. dizendo que o nam seer alemos de nos e o seer doutrem. ss. de Deos nosso criador. em cuja prouaçam diz sam Gregorio que todallas cousas seriam tornadas em nenhuúa cousa. se as maaõs de todo possante Deos as nam conseruassem porque nenhutla condiçam he tanto isenta que em fallecimento nam aja sua parte» (p. 8).
A citação tem todo o semblante de um lugar comum colhido pela predicação coetânea na teoria da dependência absoluta e eterna do criado em relação ao Criador, algo assim como a do fio de água em relação à fonte donde mana, que Avicena expusera no Metaphysices compendium (Al. Nachát). Se fosse direta e fruto da reflexão pessoal ela implicava preocupações de ordem filosófica de que Zurara jamais deu indício, pois o conceito que ele invoca procede da conceção que deu singularidade ao pensamento de Avicena, cujo alcance metafísico mais se acentuou com a crítica de Averróes e tanta fortuna haveria de ter na história da Ontologia, a saber, a teoria da anterioridade lógica e ontológica da essência em relação à existência, isto é, a conceção da existência como acidente que se acrescenta à essência.
Zurara jamais pôs os olhos em tão abstratas alturas. É certo que uma obra de Avicena, não sabemos se médica se filosófica, existia na livraria do Cabido de Lisboa, pois o infante D. Pedro obteve desta instituição, em 12 de Junho de 1423, a cedência de “um livro de Avicena em dois tomos”, e que o rol da livraria de D. Duarte menciona a existência de “Livros Davicena” em latim; mas se Zurara tivesse lido algumas páginas destes manuscritos não teria limitado a citação do nome do subtil metafísico a este único passo, que aliás faz parte — cumpre observar — de um capítulo quase totalmente copiado da Virtuosa Benfeitoria.
V) HISTORIADORES MEDIEVAIS QUE ESCREVERAM EM LATIM
Nas páginas de Zurara referem-se escritos e nomes de historiadores medievais que escreveram em latim, em castelhano e em português.
Mais ou menos, todos se aparentam pela semelhança das ideias, da metodologia e dos objetivos que consignam à História; não obstante, a exposição do assunto aconselha a que se discriminem uns dos outros.
Comecemos, pois, pelos primeiros, deixando os demais para as secções em que adiante nos ocupamos das literaturas castelhana e portuguesa.
A lista não é grande, e assim tinha de ser. Em primeiro lugar, os assuntos das Crônicas, conquanto narrassem predominantemente feitos militares, que mais ou menos se assemelham, eram como que novos, sem precedentes nos locais e nas circunstâncias, e tão subitâneos que em vez de documentos de arquivos e de chancelarias reclamavam os testemunhos presenciais e os depoimentos e recordos dos próprios protagonistas. E em segundo lugar, quanto ao método e às ideias orientadoras, a secura literária e a pobreza ideológica dos historiadores da Meia Idade que escreveram em latim e, mais ou menos, sempre entrelaçaram a história profana com a história eclesiástica, só podiam esfriar o entusiasmo de quem ficara cativo dos historiadores romanos e cuja alma vibrava de patriotismo, cuja prosa transmitia a vibração quente da oratória, cujos relatos tinham a pretensão de instruir e de moralizar. Por isso, a lista é exígua, e por demais, como veremos em conclusão, aparente e ilusória. São os seguintes os nomes a considerar: Paulo Orósio, Fulgêncio, Rabão Mauro, Mestre Pedro, Gualtero, Gondofre e Gonfredo.
Do primeiro, já nos ocupámos acima, a propósito da literatura patrística.
A referência a Fulgêncio ocorre na Cron. de D. Pedro (p. 217), em passo anteriormente citado relativamente a S. Jerónimo: “em sua obra a Paula, e Eustochio, Salustio, e Fulgencio, e casy todolos outros Autores”. Duas dúvidas suscita a referência: a identificação e a fidedignidade.
Quanto à identificação, a circunstância da citação ser feita sem qualquer alusão à pessoa, leva a crer que se trate, não de S. Fulgêncio, que morreu em 533 sendo bispo de Ruspe, mas de Fábio Fulgêncio Plancíades, gramático latino do século VI, autor do De aetatibus mundi atque hominis; e quanto à fidedignidade, pode suspeitar-se que não traduz a consulta direta, visto ser única e desacompanhada de qualquer alusão ao texto.
Rabão Mauro († 856), primus praeceptor Germaniae, aparece citado no cap. LXI da Crónica de Guiné, de maneira equívoca: “segundo screvem Josepho Rabano, e mestre Pedro...” (p. 290). O visconde de Santarém cometeu o lapso de atribuir estes nomes a um só indivíduo, o qual seria “o célebre autor da História dos Judeus, Flávio Josefo”, quando deve ler-se: Josefo e Rabano. Na realidade, trata-se de dois escritores diversos por vários títulos: Josefo, é o Flávio Josefo, a quem se referiu o visconde de Santarém, e Rabano, é Rabão Mauro, discípulo de Alcuino em Tours e que faleceu (856) sendo arcebispo de Mogúncia, o qual no passo é citado como exegeta dos livros históricos do Antigo Testamento.
Feita a fácil discriminação, na qual nos precedeu o Dr. Duarte Leite, cumpre apreciar o valor da citação, que é nulo, por se tratar, como também notou o mesmo professor, de um plágio do cap. 36 do liv. XL da General Estoria. Deve, pois, eliminar-se Rabão Mauro da lista dos escritores lidos por Zurara, dado que este passo assinala a única citação do seu nome e não há testemunho da sua obra se contar entre as que os contemporâneos do cronista prezavam.
O terceiro autor é mestre Pedro, de quem já anteriormente nos ocupámos a propósito da sua falsa identificação com Pedro Alíaco. Trata-se, como vimos, de Pedro Comestor, ou Manducator, assim chamado pelo seu infatigável e voraz amor da leitura. A citação ocorre duas vezes: na Crón. de Guiné e na Crón. de Ceuta.
Naquela Crónica, encontra-se no passo há pouco transcrito relativamente a Rabão Mauro e tem por fonte a Historia scholastica, Lib. Exodi, cap. VI (De uxore Moysi Aethiopissa). A citação, porém, reproduz, como já dissemos, um passo da General Estoria, e, consequentemente, estando desprovida de originalidade, inculca legitimamente a opinião de que Zurara desconhecia a famosa obra, tão divulgada e lida entre nós.