A citação da Crón. de Ceuta (p. 10), a par dos nomes de Santo Isidoro de Sevilha e de Lucas de Tui, é feita para abonar o facto de os Mouros se terem senhoreado da cidade do Estreito por vingança do Conde Julião. Como notou o Dr. Duarte Leite, a citação não se refere à Historia scholastica—, nem podia referir-se, quer ao texto, quer às additiones, acrescentamos, porquanto esta Historia é a narração da história sagrada do Génesis aos Atos dos Apóstolos, ou por outra palavras da criação do Mundo à Ascensão de Cristo, na qual utilizou predominantemente a Escritura e subsidiariamente alguns dados da literatura patrística e dos historiadores seculares.
Por isso, aquele Autor foi levado a conjeturar, que “o dito aí atribuído ao mestre não foi colhido na Historia scholastica e é tirado provavelmente da Catena temporum sive rudimentum novitiorum, livro raríssimo de Pedro Comestor. Sem dúvida, o cronista desconheceu o primeiro destes dois livros, ao qual nunca se reporta, tendo ocasião de o fazer e do mesmo modo o segundo”.
A fonte da citação da Crónica de Ceuta não é fácil, com efeito, de determinar. O Dr. Duarte Leite, como acaba de ler-se, formulou a hipótese de ela se reportar à Catena temporum, também de Pedro Comestor, e cuja exatidão não verificamos por se não encontrar este escrito na edição de Migne, da Patrologia Latina (t. 198). Daí, deixarmos o assunto em suspenso, bem como o exame das demais hipóteses, ou sejam a de Zurara designar nesta citação por mestre Pedro um outro escritor diferente de Pedro Comestor e a de haver colhido a referência de segunda mão em qualquer leitura não identificada.
Seja, porém, qual for o esclarecimento que venha a produzir-se, cremos que não pode subscrever-se sem mais a afirmação do Dr. Duarte Leite de que Zurara desconheceu de leitura direta a Historia scholastica. Desde o século XIII, que logo assinala entre nós o aparecimento de uma tradução portuguesa, até entrado o século XVI, são constantes os testemunhos da presença deste divulgadíssimo livro, que, como esclareceu António Solalinde, foi modelo e fonte da General Estoria.
Gualtero, citado incidentalmente na Crón. de Guiné (cap. XVI) a par do “arcebispo dom Rodrigo de Tolledo, e assy Josepho no livro das antiguidades dos Iudeos, e ainda Gualtero, com outros autores que fallarom das geeraçoões de Noe depois do saimento da arca”, foi identificado pelo Dr. Duarte Leite ao notar que nos livros II e III da General Estoria “se acham dispersos os materiais com que foi tecida a parte do cap. XVI da Crónica, que começa em “depois do deluuyo lançou Noe sobre seu filho Caym” e termina em “saimento da arca”. De facto no cap. 12 do liv. II se conta da maldição de Cam — e não Caym, como está no manuscrito parisino — por seu pai Noé, e nos seguintes se diz da descendência deste patriarca, sendo então citados Josefo e Gualtero; e nos 2.° e seguintes do III se expõe as ideias do arcebispo de Toledo D. Rodrigo”.
Esta penetrante observação sobre a génese de uns períodos de Zurara tornou fácil a identificação de “Gualtero” com o escritor francês Gauthier de Châtillon, cuja obra o cronista desconheceria, como é mais verosímil, dado que somente neste passo se refere a tal autor.
No tão citado cap. LXI da Crón. de Guiné aparece ainda um “mestre Gondofre”, de quem se refere a “IX parte do livro panteam”.
O visconde de Santarém anotou que em vez de Gondofre se devia ler Gondolfo, “escritor [que] tinha viajado na Palestina e a sua vida se acha escrita na Anglia Sacra, t. III” (G, 291, n.), mas equivocou-se na emenda, como notou Duarte Leite. Se em vez do nome tivesse atendido à citação da obra decerto lhe ocorreria o Pantheon siue memoria saeculorum, que João Pistorius publicou nos Germanicorum scriptorum qui rerum per multas aetates gestarum historia vel annales posteri reliquerunt (Francfort, 1586), e Muratori reproduziu parcialmente, isto é, sem as partes relativas ao Antigo Testamento e aos primeiros anos da era cristã, nos Scriptores rerum italicarum, t. VIII, donde Migne fez a transcrição para a Patrologia Latina, (t. 198); e consequentemente determinaria o respetivo autor, que é Gottfridus Viterbiensis (Godofredo de Viterbo), do século XII († 1191).
Se a identificação não oferece dificuldades de maior, o mesmo já se não pode dizer relativamente à leitura direta, pois esta citação de “mestre Gondofre” ocorre num capítulo que, como já dissemos, foi plagiado da General Estoria. Daqui, a natural ilação de que Zurara desconheceu o Pantheon, citando-o à fé da General Estoria.
Dá-se, porém, a circunstância da Crónica de Ceuta e da Crónica de D. Pedro citarem com as mesmas palavras e circunstâncias um “mestre Gonfredo”, cuja identificação suscita à primeira vista dúvidas, por poder referir-se a Gottfridus Viterbiensis e a Geoffrey (Godofridus) de Monmouth, o autor da Historia regum Britonum, de que Zurara teve conhecimento como adiante veremos a propósito da alusão ao Amadis de Gaula.
A dúvida, contudo, não parece muito fundada, pois a Crónica de Ceuta, onde ocorre a citação correta, é anterior à Crónica de Guiné, que copiou ipsis verbis a grafia deturpada. Se uma conjetura é possível, somos levados a admitir que Zurara citou nos dois casos sem conhecimento direto.
Da análise do conjunto das citações deste grupo resulta, pois, como hipótese mais consistente, que o nosso cronista somente teria manuseado, se manuseou, a Historia scholastica de Pedro Comestor e que desconheceu as demais obras históricas de escritores medievais que escreveram em latim, salvo a de Geoffrey de Monmouth, que o seu senso crítico aliás julgou obra de fantasia.
VII) ESCRITORES ITALIANOS
No reportório bibliográfico do nosso cronista contam-se os seguintes autores italianos: Dante, João Flamano, Cino da Pistoia, Marco Polo e Pier Paulo Vergério.
Zurara dominou o italiano, pelo menos o suficiente para entender e traduzir o que lia, como prova a tradução de alguns versos de Cino da Pistoia a que adiante nos referiremos; e até pode conjeturar-se que não foi de todo alheio à fala deste idioma, como sugere a grafia com que escreveu o nome do mesmo jurista e poeta: Chino da Pistoia. Se assim foi, é de crer que a tivesse praticado com Mateus de Pisano, mestre que fora de D. Afonso V, que lhe cometeu o encargo de escrever em latim os feitos de D. João I, do que se desobrigou com o De bello Septensi, baseado em grande parte nos escritos de Zurara, e a quem este louva como “Poeta laureado, e hum dos suficientes Filosofos e Oradores que em seus dias concorreram na Christandade” (P, 215).
Fosse, porém, qual fosse a extensão do seu saber idiomático do italiano, não foi o sentimento literário que o levou a ler as produções de poetas stilnovistas, cujos sonetos e canções tiveram, em geral, por tema o Amor.
Se a graça literária de tais poesias o tocou não deu mostra disso, porque somente mostrou, como sempre, por intrínseco ditame da sua compleição e da ambiência em que vivia e para a qual escrevia, que o cativaram as preocupações doutrinais, as exortações morais e as intenções didáticas.
De Dante leu o Inferno. É a única obra que cita. Prova-o claramente o seguinte passo da Crón. do Conde D. Pedro (p. 466): “Como as vontades humanas muitas vezes, as cousas vindouras per hum calado segredo aos mortaes apresentam, como aquelle famoso Poeta Dante na sua primeira Cantica reza, ou se vos mais praz Valerio Maximo naquelle Livro, em que abreviou as quatorze Decadas de Tito Livio achareis, como as almas per hum intrinseco segredo, vem muitas cousas, que ham de vir; e esto principalmente quando os espiritos estam repousados no sono, e os estamagos non tem tanta superfluidade de humores, ou enchimento de vianda, ou mingoamento della; perque o celebro per falsas fumosidades seja dannado…”.