Sobre a erudição de Gomes Eanes de Zurara (notas em torno de alguns plágios deste cronista)

Sob o ponto de vista psicológico, isto é, da intenção com que foi escrito, e da ética literária, a referência de Zurara é, pois, digna de todo o crédito. Podia, porém, o cronista laborar em erro e pensar de boa-fé uma coisa que não é exata; mas isto constitui outro problema, cujo fundo e cujo esclarecimento saem fora do nosso objetivo, embora se não deva deixar de ter presente o valor da sinceridade e a circunstância do informe de Zurara ser corroborado por outros testemunhos posteriores, notadamente de João de Barros e de António Ferreira, que decerto não tiveram presente a Crónica do Conde D. Pedro quando se referiram à famosa novela.

A última referência a escritos que não chegaram até nós diz respeito a um poeta judeu, Yuda Negro, autor de umas trovas dirigidas a Martim Afonso de Atouguia, escudeiro do infante D. Pedro. Do poeta e das suas poesias somente se sabe o pouquíssimo que o nosso cronista disse na Crónica de Ceuta.

No segundo grupo de citações, isto é, de livros cuja existência chegou até nós, contam-se escritos de Fernão Lopes e do rei D. Duarte e as alusões à Crónica do Condestabre e a uma Vida da Santa Rainha Dona Isabel.

De Fernão Lopes, a quem Zurara sucedeu (6-VI-1453) no cargo de guarda das escrituras da Torre do Tombo e no de cronista do reino e de quem disse que era “huua notavel pessoa... homem de comunal ciençia e grande autoridade”, cuja diligência e probidade na colheita de informes louva e a crítica nossa contemporânea tem confirmado, cita a Crónica de D. João I (C, pp. 11-12).

Em rigor, Zurara não fez a citação deste monumento da historiografia nacional, porquanto teve em vista advertir o leitor da razão de ser da sua Crónica de Ceuta e de mostrar como ela continuava a Crónica que Fernão Lopes dedicara ao fundador da dinastia de Avis e somente levara até 1411, isto é, até à ida dos embaixadores de Portugal a Castela para firmarem as pazes. O que a este propósito escreveu no capítulo II da Crónica de Ceuta ultrapassa, pois, em muito a simplicidade de uma citação, para adquirir o valor de um testemunho autorizado acerca da obra magna e dos dotes e probidade literária do nosso primeiro historiador.

É ainda nesta Crónica de Ceuta (cap. 29) que se encontra uma valiosa página descritiva da origem e manifestações da “doença de humor menemcollico” de D. Duarte, a cujo respeito, ou mais propriamente “do marauilhoso rremedio que elle achou pera sua cura”, cita “aquelle liuro que elle compos que sse chama o liall consselheiro”.

A citação, que é acompanhada da referência ao cap. XXIII desta obra, o qual se ocupa “Das partes do enfadamento”, mostra que Zurara não só lera o Leal Conselheiro senão que teve em alta conta os dotes de introspeção e de análise da vida afetiva do nosso rei-filósofo.

O subsídio que o Leal Conselheiro poderia prestar à história de D. João I também não lhe escapou, pois como notou Esteves Pereira, “a notícia contida no cap. XIII do Leal Conselheiro, relativa ao conselho feito por el-rei D. João I, quando estava na Ponta do Carneiro, entre Gibraltar e a Aljazira, e à deliberação do mesmo rei, serviu claramente a Gomes Eanes de Zurara para escrever o que sobre o mesmo assunto diz nos capítulos LXII e LXIII da Crónica da Tomada de Ceuta”.

Estes são os autores portugueses e respetivos escritos que expressamente menciona, mas, como dissemos, Zurara refere-se também a escritos cujos títulos são desacompanhados de qualquer atribuição de autoria.

É o primeiro a alusão à Crónica do Condestabre que ocorre no capítulo I ou prólogo da Crónica de Guiné, nos seguintes termos: “ca sem embargo de se em todollos regnos fazerem geeraaes cronicas dos rex delles, nom se leixa porem de escrever apartadamente os feitos dalgutis seus vassallos, quando o grandor delles he assy notavel de que se com razom deve fazer apartada scriptura; assy como se fez em França do duc Joham senhor de Lançam, e em Castella dos feitos do Cide Ruy Dyaz, e ainda no nosso regno dos do conde Nunalvarez Pereira...” (cap. I).

A alusão é manifesta, mas os termos em que se refere à discutida Crónica parecem inculcar as seguintes respostas a problemas formulados pela crítica contemporânea:

Quanto à autoria, que Braancamp Freire e Esteves Pereira admitiram pertencer a Fernão Lopes, Hernâni Cidade contestou  e W. J. Entwistle propôs ser “talvez [de] Gil Arias”, o silêncio de Zurara, dado o respeito que manifestou ter por Fernão Lopes, inclina fortemente a crer que não pertence ao autor da Crónica de D. João I.

Poderia pensar-se que achando-se ainda vivo Fernão Lopes à data da conclusão da Crónica de Guiné (1453), Zurara tivesse tido escrúpulo em lhe atribuir este escrito, mas a razão não colhe, pelo menos à primeira vista, a não ser que se tivessem incompatibilizado, quando se considera que três anos antes, em 1540 (25 de Março), ao concluir em Silves a Crónica de Ceuta se referira com o maior elogio ao autor da Crónica de D. João I, de cujos feitos aquela Crónica era continuação. Além disto:

Quanto à origem, a circunstância de Zurara apresentar a Crónica do Condestabre como obra monográfica, isto é, “apartadamente” escrita das “geeraaes cronicas dos rex”, inculca que as páginas que a constituem — ou talvez mais exatamente constituíam, dada a divergência dos passos reproduzidos por Fernão Lopes e do texto que até nós chegou — não foram tiradas à crónica geral do reino nem à crónica de D. João I, tal como a crónica ou biografia do Cid era obra diversa e se não confundia com as páginas da Cronica General relativas ao herói burgalês.

Quanto à época da composição, isto é, se a Crónica do Condestabre é ou não anterior à Crónica de D. João I, o contexto não estabelece nenhuma ilação, mas também não invalida a tese bem fundada da anterioridade daquela Crónica.

Este passo suscita ainda algumas observações sobre o que Zurara entendia por “crónica geral”.

Como se vê, distinguiu a biografia, ou narração de feitos particulares, da “geral crónica dos reis” que reinavam nos Estados em que se produziram os feitos memoráveis de súbditos dignos de serem historiados separadamente. Teve por sinónimas as expressões “geral crónica dos rex” e “cronica geeral do regno”, e atribuiu-lhes como objeto o relato do que importava à história geral de Portugal, como se depreende do seguinte passo da Crónica de Guiné: “... dom Alvaro de Luna, o qual seendo homem de pequena maneira, per sobegidom da fortuna, ou per alguu outro callado segredo, veo a seer em tal posse, que fazya no regno o que lhe prazya, entanto que per sua causa, forom mortos e destroydos os principaaes de Castella, segundo todo esto mais largamente poderees saber na cronica geeral do Regno, porque de necessidade se devem os dictos feitos ally de tocar” (cap. LI).

Quer dizer: a Crónica Geral do Reino registava ou relatava acontecimentos da história pátria e também os da história espanhola que se relacionassem diretamente com a portuguesa. A justificação de coisa tão óbvia e supérflua mostra que Zurara considerava a função da “crónica geral” como diversa das crónicas de feitos ou de indivíduos que nos legou: a “crónica geral” parece que era (ou devia ser) o registo ou arquivo de acontecimentos ligados diretamente à ação real ou nacional, o qual se lançava ao papel sem a vibração da sensibilidade literária e sem a apreciação crítica do juízo. Numa palavra: a “crónica geral” seria obra de arquivista, cujas laudas se transmitiam como registo oficial que devia ser continuado; a biografia, obra de cronista, isto é, de historiador.


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