Sobre a erudição de Gomes Eanes de Zurara (notas em torno de alguns plágios deste cronista)

As passagens aspadas, e que grifámos, a uma superficial leitura surgem desde logo como proferidas pelo próprio Sócrates, e com efeito são tradução do Phedon, como se vê pelo cotejo das seguintes versões de Marsílio Ficino e de Pero Diaz de Toledo:

“Ouidnam, inquit, o viri mirabiles, agitis? Atqui ego maxime hanc ob causam mulieres abegeram ne talia facerent. Audiveram enim cum gratulatione et applausu esse ex hac vita migrandum”.  

“Ista quidam, ait Crito, curae nobis erunt. Sed quem admodum sepeliri te iubes? Utcumque, inquit, libet: sitamen me apprehendetis, ac nisi ego vos effugero. Et simul subridens, et ad nos conversus, non persuadeo, inquit Critoni, me esse hunc Socratem qui nunc disputo et singula dicta dispono”.        

 “Haec Socrates audiens, leniter arrisit, dicens: Papae ô Simmia, quam difficile aliis persuaderem hanc me fortunam haudquaquae adversam existimare, quando ne vobis quidem id persuadere possum. Quippe cum metuatis ne difficilior moetiorque sim in praesentia, quae in superiori fuerim vita. Atque,      ut apparet, deterior cygnis ad diuinandum vobis esse videor. Illi quidem quando se braevi praesentiunt moritures, tunc magis admodum dulciusque canunt quae antea consueverint, congratulantes quod ad deum sint cujus erant famuli, jam migraturi. Homines vero cum ipsi Mortem expavescant, cygnos quoque falso criminantur, quod lugentes mortem ob dolorem cantum emittant (a). Profecto haud animadvertunt nullam esse avem quae cantet, quando esuriat, aut rigeat, aut quovis alio afficiatur incommodo”.

“O uarones que fazedes el por tãto enbie yo las mugeres por q nõ fiziessen estas cosas. Que yo syempre oy q el q passa desta uida deue passar en bendiçion e non en lloro” fls. 58 v -59.

 «Non puedo fazer biê creer a critõ q yo se aquel socrates al disputo agora pono”. e hordeno aelsta fabla” fl. 56 v.

 “Segun yo ueo pêsades uos otros que yo sea de mas baxa cõdiçion e mas synple pera adeuinar q son los çisnes. Los quales coftio se syenté çercanos ala muerte entonces cantã mücho meior q cantarõ enel tpo passado por q se alegrã por q se uã pera aql dios de qen erã suidores. E aliene assy q por q los honbres reçelã la muerte calüpniã alos çisnes. e dizé q llorã su muerte e por el gran dolor q tiené cantã. E nõ piêsan nIgü que es q cante qndo ha fanbre ni quãdo  ha frio ni quãdo padece algú otro trabaio.” 46 fls. 29 v.-30.

Basta o simples confronto das passagens da Tragédia com a tradução de Pero Diaz de Toledo para provar que o Condestável teve presente esta última, não se servindo portanto de uma tradução latina. Como obteve, porém, o conhecimento desta tradução?

Como seu pai o infante D. Pedro, seus tios o rei D. Duarte e o infante D. Fernando, seu irmão D. Jaime, Cardeal de Santa Maria in Porticu, e alguns portugueses como o ignorado Valasco, o Condestável teve também a paixão da leitura, lançando-se “en el pielago de los estoriografos e de los sabios”, não só pelo prazer de encontrar lenitivo “en la secreta camara” do seu pensamento às desditas próprias e alheias mas também de satisfazer a curiosidade intelectual e robustecer a sensibilidade moral, tão vivas uma e outra na alma da ínclita Geração. Esta paixão pelo vivo dista muito da ânsia erudita, aberta para a antiguidade, dos italianos do seu tempo; mas nem por isso, no entusiasmo e na essência, deixa de ter uma raiz espiritual idêntica.

Entre os seus correspondentes figura, como é sabido, o bibliófilo e cultíssimo Marquês de Santillana e Conde del Real de Manzanares, Iñigo Lopez de Mendoza (1398-1458), que, acompanhando a oferta das suas obras, lhe dirigiu a tão conhecida carta, escrita entre 1445-49, reveladora de elevada consideração pelo nosso Infante e simultaneamente notabilíssimo documento, recheado de informações a que o historiador das ideias portuguesas, ou melhor, peninsulares, tem necessariamente de recorrer. O Marquês de Santillana, bibliófilo e erudito, reuniu em Guadalajara uma copiosa e culta livraria, com “tous les petits luxes qu'un lecteur délicat se plait à rencontrer sur les feuillets des muets compagnons de ses veilles ou de ses méditations”, como disse o seu acurado e diligente monografista enriquecendo-a dia a dia com ofertas, cópias e traduções de autores clássicos, medievais, italianos, etc., convertendo-a, afinal, no “modeste berceau des nouvelles idées que l'humanisme italien comuniqua à l'Espagne”.

Entre os seus tradutores mais afamados figura “el doctor Pero Diaz de Toledo”. Conseguiu este letrado, capelão do Marquês, obter, seguramente por seu intermédio, a tradução latina do Phedon que Leonardo Bruni, d'Arezzo, — o humanista precursor de Ficino, que a partir de 1400 se propôs verter toda a obra do “divino” e para cuja execução lhe faltava a religiosidade platónica do fundador da Academia florentina, — oferecera ao papa Inocêncio VII vertendo-a, por seu turno, para espanhol. A versão é precedida de uma introduçion del libro del Platon llamado Fedron de la ynmortalidat del alma por el doctor Pedro Dias trasladado e declarado e, como lhe era talvez devido, ofertou-a ao “muy generoso e virtuoso señor singular suyo, señor Yriigo Lopez de Mendoça, señor de la Uega”

Foi por intermédio desta tradução que o Phedon se tornou conhecido em Espanha, como claramente afirma o tradutor nas palavras que na nota anterior grifámos. A afirmação tem todos os visos de verdadeira, pois não consta que antes de Marsílio Ficino, cujo fervor platónico entusiasticamente se propagou como se fora nova religião, este diálogo tivesse tido outra versão peninsular, e nem sequer temos indícios da cultura peninsular ter sofrido a influência das versões medievais, como a que Victor Cousin aponta.

Dadas as relações intelectuais que D. Pedro manteve com o Marquês de Santillana, não é para surpreender que este lhe tivesse proporcionado uma cópia do trabalho do seu capelão.

E dizemos cópia porque o Condestável possuía na sua apreciável livraria, cujo catálogo foi pela primeira vez publicado por Balaguer y Merino e reproduzido pela Senhora D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, em apêndice (I) à recente reedição da Tragédia, um “libre maior de forma de full, scrit en pergami ab corondells, en vulgar castella, ab posts de fust cubertes de cuyro vermell empremptades, ab quatre scudets, e dues anelletes en cascu, tor dargent daurat ab les armes de portogal en los dos scudets, e en los altres dos la roda de fortuna, ab dues tirets de seda groga, intitulat en la cuberta ab letres dor, De la immortalitat de la anima. Feneix en la penultima carta son prestas e aapre; reservat en un stoig de drap violate”.

Vislumbra-se através do laconismo desta descrição, puramente externa, o diálogo platónico, pois cremos não ter existido nesta época nenhuma obra com este título: De la immortalitat de la anima. E sendo assim, que tradução poderia ter sido senão a de Pero Diaz de Toledo? Outro prócere ilustre, o Príncipe de Viana (D. Carlos), cujo falecimento (23-Set.-1461) suscitou as pretensões do Condestável à coroa de Aragão, e a cuja copiosa livraria, que, segundo Teófilo Braga, em grande parte constituiu a do Condestável; mas nos 96 números do seu catálogo não se depara nenhum referente à obra daquele título.

Parece, pois, poder concluir-se que o Condestável D. Pedro foi o primeiro português que leu a tradução de um diálogo platónico — o Phedon—, graças à estima do Marquês de Santillana, e que é necessário avançar no século XVI para se encontrar o real conhecimento da obra do “divino” e a mais profunda influência da sua filosofia na nossa cultura, quer nas ideias gerais, de intenção filosófica, quer na mística, de enlevo religioso.


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