Sobre a erudição de Gomes Eanes de Zurara (notas em torno de alguns plágios deste cronista)

a) Ethicas (G, p. 37, Livro VII da Saberya; D, p. 148)

Esta obra, cuja influência no desenvolvimento das ideias morais do nosso Quatrocentos foi grande, parece ter sido dentre todos os escritos de Aristóteles o que Zurara melhor conheceu —, ou talvez, com mais propriedade, aqueles cujas ideias melhor conheceu, por leitura directa ou indireta, ou ainda por outiva.

Que texto leria? Faltam-nos elementos seguros para fazer a história deste livro entre nós; mas cremos não andar longe da verdade afirmando que esta designação —Ethicas— é a tradução do Liber Ethicorum e não um plural formado pelo claro conhecimento das duas Ethicas que a Idade Média distinguiu: Ética a Nicómaco e Ética a Eudemo.

O Liber Ethicorum, assim chamado na nomenclatura medieval por compreender a Ethica vetus (livros II e III), a Ethica nova (liv. I) e os demais livros (IV, V, VI, VII, VIII, IX e X) que constituem a Ética a Nicómaco, teve larguíssima difusão, mormente depois de comentado por S. Tomás de Aquino, chegando até o bispo de Burgos, atrás citado, a preferi-lo à tradução direta da Ética a Nicómaco que Leonardo Bruni fez e dedicou ao papa Martinho V. Citando a Ética na Crónica... de Guiné e na Crónica de D. Duarte, Zurara tem presente apenas o livro VI, referindo-o expressamente, como naquela Crónica, já aludindo, como na de D. Duarte, a um conceito que Aristóteles largamente explana naquele livro.

Na Crónica de Guiné, p. 37, diz: “Mas que esta obra que eu fiz se ponha em público, eu nom demando nem requeiro, ca nom he tal que se deva poer em torre, como os de Athenas poserom a Minerva de Fadyas, scilicet, a fegura da deessa Pallas, a qual polla excellencia de sua fremosura foe posta em alto por seer milhor esguardada de todos, como diz o philosofo no vj de suas Ethicas, no capitollo da saberya”.

Saltam desde logo dois erros evidentes nesta passagem: Fadyas, por Fidyas (apontado já pelo Visconde de Santarém) e saberya, por sabedorya. E de facto no cap. 7 do liv. VI da Ética a Nicómaco, fala-se, dentre outros, em Fídias “escultor sábio”, para demonstrar que a sabedoria é a mais perfeita ciência — porém, incidentalmente e sem fundamentar a conclusão que o cronista tinha em vista.

O começo do cap. LVII da Cr. do Conde D. Duarte— “Como huma das partes da prudencia pera consirar as cousas que podem acontecer, segundo diz o Philosopho no livro das Eticas, onde diz, que aquelle se pode chamar verdadeiro prudente, cujo natural entender conhece as cousas que se ao diante podem seguir...”, é diretamente inspirado também no lib. VI Ethicorum.

Significa o paralelismo destes textos que Zurara lera a obra aristotélica? Não ousamos uma resposta; apenas notamos que teve em vista predominantemente, senão exclusivamente, o livro VI, no qual Aristóteles largamente discorre sobre os “hábitos” do entendimento (partes da prudência, bom conselho, utilidade da sabedoria e relações recíprocas que as virtudes mantêm entre si, etc. Podia tê-lo lido; no entanto, cumpre ter presente que era frequentemente citado, dada a importância que por então se atribuía aos problemas do fundamento e ordenação do poder político.

b) Livro da Jconomica

A Oeconomica, que entrou no património medieval no séc. XIII  — o século do aristotelismo — e de cuja autenticidade numerosos críticos suspeitam, também é citada por Zurara na Crónica de Ceuta: “Ca he certo que aquella cousa he de nos mais amada e prezada, cujo senhorio per gramde trabalho cobramos e por tamto diz o filosofo no liuro da yconomica, que os mançebos desprezam as rriquezas, porque as cobraram ligeiramente, e por tamto naturallmente som liberaaes e gastadores, o que os uelhos ssom pollo comtrairo” (ed. cit., pp. 214-215).

Este escrito, que assinala a única contribuição conhecida de um português no movimento medieval de recuperação da obra de Aristóteles, podia ter sido lido pelo cronista, mas é mais crível que a citação seja direta, ou de segunda mão, dado o facto de não termos encontrado vestígios diretos do conhecimento deste livro no nosso século XV.

c) Liuro da natureza das animalias

Na Crón. de Ceuta (p. 274), numa passagem assaz obscura, refere-se a este livro, a propósito da “inteçessom dos samtos, primçipallmente da gloriosa e sem nehuúa mazella uirgem nossa Senhora santa Maria sua madre, a quall segumdo diz o philosofo no liuro da natureza das animalias, que a propria comdiçom da poomba he em toda sua uida sempre gemer”.

Que livro teria em vista Zurara? Na leitura dos tratados aristotélicos, e dos que lhe têm sido atribuídos, e cuja autenticidade, pelo que a cada um respeita, no todo ou em parte, oferece muitas dúvidas, — De animalium motione, De animalium incessu, De historia animalium, De partibus animalium et earum causis, De generatione animalium, nada colhemos que o pudesse identificar. Teria o nosso cronista feito a citação diretamente? Não é crível, porque tudo indica, dada a correlação da citação com a virtude intercessora da Virgem Maria, que a colheu em qualquer página de edificação religiosa.

d) Segredo dos Segredos

Na Crónica de Ceuta (p. 118) diz Zurara: “... E Aristotilles, que desto tomou muy espiçiall cuidado, disse naquelle liuro que sse chama segredo dos segredos, que emuiou a Alexandre açerqua da fim de seus dias, que çertamente elle se marauilhaua do homem que comia pam de trijgo e carne de dous demtes, poder naturalmente fallecer”.

Trata-se, sem dúvida, do Aristotelis secretum secretorum ad Alexandrum M. de regum regimine, de sanitatis conservatione..., que em 1516 Alexandre Achillinus, em Bolonha, publicou com várias obras falsamente atribuídas a Aristóteles.

Este livro, que Zurara consideraria como autêntico e a crítica de há muito estabeleceu como apócrifo, atribuindo-o à literatura árabe, não passando de mais um facto a testemunhar a vitalidade e exuberância das lendas sobre Alexandre, não surpreende que apareça nas páginas do cronista. Independentemente da fortuna que ele teve na literatura peninsular  e francesa, não lhe faltavam na roda culta da corte sugestões que o levassem à sua leitura. D. Duarte cita-o no Leal Conselheiro — se é que não traslada algumas passagens, apesar de ter dúvidas sobre a autenticidade --, e o infante D. Henrique, que Zurara tanto considerou, talvez nele colhesse mais que o título, se é exata, como tudo indica, a referência de Fernando Colombo, além de que a cultura medieval lusitana, sua coeva, o integrava a par dos tratados De regimine principum, de Tomás de Aquino e de Egídio Romano, e do Polycraticus, de João de Salisbury, entre as fontes primaciais do estudo dos problemas sobre o poder político, ou mais exatamente, da conexão da Política e da Moral.

Estes são os livros aristotélicos no sentido lato, cuja citação pode admitir-se com alguma verosimilhança ter sido direta e de iniciativa de Zurara. Além deles, porém, há os que concorrem nos trechos plagiados da Virtuosa Benfeitoria, como se pode verificar no Apêndice (A), e que não foram citados em qualquer outro passo, pelo que é legítimo estabelecer que se trata de livros que o cronista não leu nem nunca utilizou de visu.

São as seguintes: a Física, isto é, o “segundo liuro da natural filosofia”, em C, 3; as Categorias, do Organon, isto é, o “primeiro liuro da logica”, em C, 3; o liv. I da Metafísica, isto é, o “primeiro liuro da tramsçendemte philosofia «, em C, 93, e o De Coelo, isto é, o de çely et mundi, em G, 4618.

Algumas linhas adiante da passagem da Crón. de Ceuta em que cita o Segredo dos Segredos, fala em “Alexandre ho gram rrey de maçedonia”, o qual “seria bem comtemte de trocar a prosperidade que lhe os deoses tijnham aparelhada, e afastar sua maão de toda parte que lhe no çeeo podiam dar, por auer huü tam alto e tam summo autor pera seus feitos, como ouuera Achilles em Omero poeta”. Não sabemos onde Zurara colheu este conceito, não repugnando admitir que em Portugal tivesse sido conhecida integralmente a apócrifa Epistola Alexandri ad Aristotelem, de certa voga na literatura medieva e cujos excertos transcritos por Egídio Romano no De regimine principum (v. g. L. I, P. II, caps. XXXIII e XXXIV) o nosso cronista decerto leu na tradução do infante D. Pedro.


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