Sobre a erudição de Gomes Eanes de Zurara (notas em torno de alguns plágios deste cronista)

Finalmente, pelo que aos autores gregos respeita, cita ainda Ptolomeu, o célebre astrónomo do II século, cujo nome invoca três vezes.

Serão as citações diretas e conscienciosas ou, pelo contrário, o eco vão de lugares comuns? A resposta, digna de atenção pelas implicações que comporta, não é fácil.

O exame intrínseco não é favorável a Zurara, pois conduz à resposta negativa, como lucidamente mostrou o Dr. Duarte Leite nos seguintes períodos:

“Tolomeu é citado três vezes fora do rol de autores do cap. 61 [da Crón. de Guiné]. No 63, da Crónica de D. Pedro de Meneses, refere-se Zurara ao “... grande estrollogo Tollomeo, que foi rei do Egito...”, confundindo com um dos Lágides o sábio alexandrino, a quem devemos a famosa Syntaxis magna, introduzida na Cristandade pelos árabes sob o nome Almajesto, bem como a também celebrada Cosmografia (ou Geografia), obras que por largos anos dominaram no campo científico.

 “A referência ao suposto rei egípcio deixa em dúvida se o cronista leu qualquer dos seus escritos, e o mesmo sucede à que fez aos “textos de Tolomeu” no cap. 58 da crónica da tomada de Ceuta; mas adquire-se a certeza de que desconheceu o Almajesto quando se atenta no seguinte passo do cap. 103 da mesma crónica: “sse eu dissesse alguüa cousa açerca da diuisam daquellas planetas, e os caminhos que trazem cada huúa em sua uolta, saluo a novena que he unica e nom tem epiçicollo, segumdo mais compridamente podem saber aquelles que tem uistos os teistos de Tollomeu ou leerem per Almajesta».

Nesta tirada pedantesca não se inclui o cronista nos que “tem uistos os teistos” do astrónomo grego, facto significativo, e comprova-o o final “ou leerem per Almajesta”, onde a disjuntiva os torna distintos deste tratado, quando ele é o único tolomaico, onde são descritas as órbitas dos planetas e da Lua. Aliás sua leitura exigia conhecimentos matemáticos que faltavam inteiramente ao cronista.

“Teria ele acaso consultado a Cosmografia, apesar de integralmente copiado o cap. 61, onde é nomeado o seu autor a respeito do Nilo? De modo algum, pois se o tivera feito não deixaria de expor a teoria tolomaica do curso deste rio, ao passo que se limitou àquela, de Plínio, e tal como a achou deturpada na General Estoria.

“Não é porém de surpreender o desconhecimento daquela obra geográfica, porque embora já em 1410 traduzida em latim por Jácome Angelo de Scarparia (que todavia não lhe juntou suas famosas tábuas), não circulava ao tempo em Portugal, ao contrário do que geralmente se crê, e já o afirmara João de Barros.

 “Santarém, partindo de que Zurara se mostra embebido de crença na astrologia judiciária, supô-lo muito provavelmente leitor do Opus quadripartitum de astrorum judiciis, escrito falsamente atribuído ao astrónomo alexandrino na Idade Média, no qual o cronista nunca pôs os olhos, pois de contrário não se esqueceria de se abonar com tão grande autoridade nos vários passos de suas obras, onde se refere o influxo dos corpos celestes no mundo sublunar, como por exemplo nos caps. 7 e 28 da Crónica da Guiné”.

Se esta é a conclusão mais plausível a que conduz o exame intrínseco das citações, outro pode ser o juízo se elas forem consideradas extrinsecamente, isto é, sob o ponto de vista do conjunto da obra de Zurara e do ambiente histórico-cultural em que ele escreveu.

Com efeito, as suas crónicas assentam na conceção de duas ordens de conhecimentos a que os demais por assim dizer se subordinam: os ético-políticos, no cimo, que são a razão de ser e o fim dos valores e dos conhecimentos relativos ao homem e à sociedade, e os astrológicos, que representam a expressão mais alta do saber natural.

Pelo que a estes respeita, é claro testemunho da importância que Zurara lhes atribuiu a extensão que as considerações e digressões astronómicas ocupam no conjunto dos excursos, já justificando a razão de ser da astrologia contra as objeções de Santo Agostinho, como adiante veremos, já dando largas, com evidente satisfação não isenta de intenção docente, à exibição de alusões ou de conhecimentos da ciência dos astros. Pode ver-se nesta prática a influência dos escritos de Afonso o Sábio, notadamente da General Historia, de cujas laudas Zurara plagiou vários trechos de índole científica, como pela primeira vez mostrou o Dr. Duarte Leite, e das Tábuas Alfonsinas, cuja utilização a Crónica de Ceuta acusa na menção das diversas eras (caps. LXXXVII e CV), como notou Esteves Pereira s.

Zurara, porém, não foi um escritor isolado, que no recato do escritório somente sentisse a presença silenciosa dos livros que manuseava e a apreciação hipotética de um público vago e indistinto de anónimos leitores. Longe disso. Viveu numa roda intelectual e áulica, da qual recebeu encargos e estímulos, para a qual escreveu e sem a qual a estrutura ideológica e a finalidade das suas crónicas se não torna compreensível. Trabalhou com livros do Paço real e utilizou largamente, como adiante veremos, os códices que a Ínclita Geração redigiu, trasladou e prezou, e sofreu o influxo das ideias morais e científicas que configuraram a compleição espiritual dos “altos Infantes”.

Desde os tempos de D. João I, como testemunha o Livro da Montaria, os conhecimentos astronómicos constituíam o objeto mais apreciado do saber natural; D. Duarte, com as instruções para se saberem as horas durante a noite, insertas no Leal Conselheiro, o infante D. Henrique, com o perdido Secreto de los Secretos de Astrologia, e D. Afonso V com o Discurso em que se mostra que a constelação chamada Leão celeste constava de vinte e nove estrelas e a menor de duas, mostram a continuidade no cultivo de uma ordem de conhecimentos, que teve de algum modo a sua confirmação nos horoscópios relativos a pessoas da família real que as crónicas transmitiram.

Zurara não se furtou à influência desta tradição científica nem à da credulidade do seu desvio astrológico. Provam-no com evidência numerosos trechos das suas crónicas; mas não é menos evidente que considerações gerais da natureza das que acabámos de fazer não provam que ele conhecesse da leitura direta “os teistos de Tolomeu” ou “lesse per Almajesta”.

Inclinam, sim, e fortemente, a pensar que não era mero plagiador quando discreteava sobre generalidades astronómicas; e embora não estivesse à altura de ler conscienciosamente o Almajesto e a Geografia, especialmente o livro I, por falta de conhecimentos matemáticos, temos por seguro que sabia manejar empiricamente a esfera armilar, sendo capaz de a dispor em ordem a estabelecer horóscopos, e, como notou Esteves Pereira, de utilizar tábuas astronómicas.

II) ESCRITORES ROMANOS

Se era exígua a biblioteca de escritores gregos que Zurara utilizou mediante traduções, pois não consta nem há indícios de sequer ao menos soletrar o alfabético ático, já o mesmo se não pode dizer da literatura latina.

Utilizando o latim com desembaraço, pelo menos na compreensão do que lia, como dão a entender alguns passos de traduções suas e o juízo de Mateus de Pisano confirma ao chamar-lhe bonus grammaticus, professando o ofício de cronista, cuja condição literária na estimativa da época tinha de associar o relato e os juízos do historiador à parénese do moralista, e vivendo numa corte que prezava a expressão eloquente a par da intenção moralizante e da finalidade educativa, a sua pena tinha forçosamente de pedir aos escritores latinos incentivos, ideias e paradigmas.


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