Não admira, pois, que tivesse recorrido com maior assiduidade e proveito ao espólio literário de Roma, de cujos grandes nomes cita Júlio César, Salústio, Tito Lívio, Plínio, Valério Máximo, Ovídio, Lucano, Cícero, Séneca, Vegécio, mas com ter tido maior contato nem por isso deve ser tido como erudito ou até perfeito “latinado”. Compreende-se.
Zurara escreveu em tempos em que as pesquisas corajosas e reveladoras dos pioneiros do Humanismo, contemporâneas e de algum modo paralelas no conhecimento da Antiguidade ao conhecimento da Natureza revelado pelas primeiras viagens dos nossos descobridores, ainda não haviam desentranhado da obscuridade em que jaziam alguns dos melhores tesouros literários do mundo clássico. A situação epocal explica, pois, satisfatoriamente a relativa pobreza do seu catálogo de Latinos, e também torna compreensível que Zurara tivesse lido os livros latinos de que dispôs com a mente e com a sensibilidade que configuraram a psicologia e a compleição espiritual da “ínclita Geração”. As citações e referências à literatura latina obedecem, quase sem exceção, à finalidade de justificarem ideias, sentimentos e conceções vigentes na roda culta dos paços dos Infantes e da corte de D. Afonso V, — quer dizer, em vez do pensamento antigo reviver ou se prolongar na própria peculiaridade, como irá ser quase um século mais tarde, em tempos de D. João III, é a contemporaneidade do cronista que lança os olhos para a Antiguidade, na ambição de se reconhecer e decorar com a venera de tempos memoráveis. Daí, as citações dos escritores antigos, mormente latinos, serem às vezes deformadas com vestimenta que lhes não pertence, como no caso em que designa de “Bispo Acoreo” o sumo sacerdote egípcio em cuja boca Lucano pôs uma pedantesca dissertação sobre o Nilo, servirem instrumentalmente de justificação de conceitos e valores morais prezados no tempo do cronista e até de fundamentarem o próprio ideal medievo do cavaleiro, cujas últimas cintilações faiscaram da alma ardida de D. Afonso V e cujos derradeiros fulgores de heroísmo e de nobreza de ânimo deslumbraram com emulação literária a pena de Zurara.
Com ser pequena a livraria latina, nem por isso deixa de ser difícil, senão impossível, precisar com alguma particularidade a quota com que cada um destes escritores participou na elaboração do pensamento e do critério estimativo do nosso cronista; no entanto, é-se irresistivelmente levado a crer que, como historiador-moralista que quis ser e foi, e como escritor declamatório que não atingiu o volume que o inchaço do seu gesto retórico requereria, foi nas páginas de Lucano, de Cícero e de Séneca, que mais atentamente se fixou, a ponto de parecer que lhes deve o miolo de bastantes ideias.
Com efeito, quantitativamente consideradas, não são reiteradas nem extensas as citações dos historiadores romanos, conquanto diga, de modo geral e vago na Crónica de Ceuta (cap. XXXIX) que lera “muy gram parte das cronicas e livros estoreaes”. Assim, na Crónica de Guiné (p. 223), incidentalmente, no introito do cap. 48, com modos de reflexão filosófica, faz uma referência aos “comentareos de Cesar”, parecendo ter em vista os Commentarii de bello civiii, para justificar o conceito trivialíssimo das vicissitudes da fortuna humana: “ca segundo he scripto nos comentareos de Cesar, nom podem os imiigos sofrer longa tristeza, nem os amigos continuado prazer”; e de Salústio tudo indica ter conhecido apenas o Bellum Catilinarium, já referindo-se-lhe expressamente como na Carta que... screueo ao Senhor Rey, [D. Afonso V] quando lhe enviou a Crónica de Guiné, já tendo-a em vista, como na passagem desta Crónica em que o nome do historiador é citado.
Dos historiadores do período clássico foi para Tito Lívio que Zurara dirigiu a preferência, a avaliar pelas citações que ocorrem em todas as crónicas, verbigratia na de Ceuta (pp. 15, 119, 219), na da Guiné (pp. 77, 149), na de D. Pedro (pp. 241, 259, 524) e na de D. Duarte (pp. 10, 173). Mais do que o conhecimento dos factos tê-lo-iam cativado as digressões, as tiradas declamatórias e as reflexões do escritor que considerara a História como “munus oratoris”; por isso, no pendor destes atrativos, que eram corno que a sublimação da sua natural propensão e afiançavam os valores que contemporaneamente mais se prezavam na atividade literária, dedicou também o maior apreço a Valério Máximo.
Na primeira fase da sua vida de cronista, ou seja a época da redação das Crónicas de Ceuta e de Guiné, tudo concorre para estabelecer a opinião de que Valério foi o espelho preferido, como Tito Lívio o foi na segunda fase, representada pelas Crónicas de condes D. Pedro e D. Duarte, nas quais é sensível o gosto da concisão e da precisão, por outras palavras talvez mais adequadas, o cansaço da retórica. Sem embargo, a conceção da História assim como o próprio processus narrativo das Crónicas filiam-se em grande parte nos Dictorum et factorum memorabilium libri IX, designadamente a prática reiterada de fazer anteceder de considerações gerais a narração de cada capítulo e a frequência com que recorre à lição dos exemplos e entremeia o relato dos acontecimentos de reflexões morais em estilo declamatório. Assim, para dar ideia da intenção com que se ocupará do infante D. Henrique, escreve na Crónica de Guiné (cap. VI) estes significativos períodos: “E tu, grande Valleyro, que com tanto trabalho ocupaste o teu studo em apanhar e ajuntar as forças e vertudes dos nobres e excellentes barões da tua cidade, por certo eu te ouso bem dizer, que ante tantos e tam claros, tu nom poderas em superlavito graao fallar doutro semelhante...”
Não é de estranhar, por isto, que cite em todas as Crónicas a obra do historiador que em seu juízo fora “abreviador de Tito Lívio” (P, 492), cuja obra designa por vezes (G, 77, C, 219) de Soma ou Suma de estorya romaã e cujo crédito via abonado por autoridades como Egídio Romano, que no De regimine principum frequentemente invoca exemplos e conceitos colhidos nas páginas de Valério.
" Verbigr.: G, 38, 77; P, 278, 466, 492; C, 9, 35, 119, 124, 219; e D, 8.
Além e acima da influência dos historiadores fez-se sentir, porém, a dos escritores que se ocuparam de temas morais, no sentido mais amplo da palavra, isto é, do que importa à conduta humana e à vida das sociedades politicamente organizadas.
Era como que o ditame de quem pensava, como escreve na Crónica de Ceuta (cap. XXXVIII), que “toda a principal fim dos autores estoriaaes esta no rrecontamento das uirtuosas pessoas, porque a sua clara memoria per nenhuu perlomgamento de hidade possa seer afastada damte os presentes”. No íntimo, considerava a História como biografia, isto é, modelo e norma para a vida. Daí, a feição didática, ou mais exatamente magistral, que a narração histórica e as digressões assumem na sua pena, sempre cuidadosa de que a notícia ou o relato sirvam a um tempo de informação, de parecer e de exemplo.
Os poetas, como poetas, ou os desconheceu ou não os julgou próprios da gravidade das páginas da História, porquanto apenas se contam uma única citação de Ovídio (C. 140) e algumas de Lucano (C, 273; D, 10; G, 39, 53, 289, 300), de cuja Pharsalia cita expressamente os livros IV (C, 273), V (G, 53) e VIII (C, 273) e traduz alguns versos do canto X num passo da Crónica de Guiné (p. 300), cujas considerações astronómicas do cap. LXII parecem ser o desenvolvimento de sugestões de Lucano no mesmo canto X.