Sobre a erudição de Gomes Eanes de Zurara (notas em torno de alguns plágios deste cronista)

Em rigor, não foi o enlevo da beleza literária de Ovídio ou de Lucano que cativou Zurara, mas o sentido moral dos versos de um e de outro e, em especial, a feição declamatória da Farsália, que aliás é citada numa nota da Crónica de Guiné (p. 53) a propósito das nove musas do Parnaso, a título de fonte histórica, no que o autor da nota, pertença ou não a Zurara, se mostra fiel à tradição medieval que viu na poesia a expressão informativa e verosímil de acontecimentos; por isso, se compreende que não tivesse invocado nenhum dos maiores nomes da poesia latina e somente houvesse detido a atenção com algum vagar sobre páginas de franca intenção moralizante. Estão neste caso Cícero, Séneca e Vegécio, os três autores latinos mais prezados na corte joanina e muito especialmente pelo infante D. Pedro.

De Vegécio, cita expressamente o Epitome institutorum rei militaris lib. X, sob o título resumido de De re militari (P, 484, e G, 148) e respec-tiva tradução portuguesa intitulada Arte militar (P, 228), o que mostra que teve presente a tradução que o infante D. Pedro, Duque de Coimbra, havia feito, segundo informa Rui de Pina.

A matéria deste tratado constituía o complemento natural da educação do Príncipe, caindo de pleno sob as preocupações pedagógicas e moralistas que incitaram a atividade literária do Infante. O facto de Zurara citar o título latino da obra de Vergério não é prova de que tivesse lidado com o original; pelo contrário, a citação da tradução portuguesa assinala mais um facto a juntar aos que testemunham que teve presente e bem à vista os escritos originais e traduzidos por e para os descendentes de D. João I.

De Séneca, isto é, de Lúcio Aneu Séneca, o Filósofo, que não do pai, o Declamador, além de uma referência sem indicação bibliográfica (C, 141) cita expressamente a Tragédia I. (G, 12 e 43) e o “Trautado das vertudes (G, 149) por cuja designação entendia o De beneficiis, em cuja autoridade se apoiou para fundamentar conceitos morais, como o da vantagem dos governantes se aconselharem, embora o não tivesse feito tão extensa e profundamente como o infante D. Pedro na primeira redação da Virtuosa Benfeitoria.

De Cícero, ou Tullio, como normalmente escreve, invoca por vezes o nome e a autoridadeembora da vasta obra do grande orador cite apenas o De senectute, com este título (C, 273) ou na respetiva tradução portuguesa Livro da Velhice (C, 35), e o De officiis, assim referido: primeiro liuro dos officios (C, 200).

Surpreendem tão escassas citações de um autor de quem na Virtuosa Benfeitoria se diz ser “gracioso Rectorico” e “antre os philosophos moraaes em bem fallar tem froll graciosa”  e cujos conceitos morais, mormente na parte em que tocam ou prolongam o estoicismo, notadamente de Panécio, parece que se adentraram no pensar da corte joanina. É certo que o Livro da Montaria não refere obra alguma do polígrafo romano, mas mais significativo é o facto do infante D. Pedro ter traduzido o De officiis. O Rei D. Duarte, para além de citações, declara expressamente no Leal Conselheiro ter havido cabal conformidade do proceder da corte com as reflexões de Cícero acerca da amizade, maneira de dizer com que aliás se exprime a razão da divulgação do pensamento ciceroniano durante a Idade Média, a qual residia na conformidade com a ética cristã.

D. Duarte possuía na sua livraria o manuscrito do Livro dos Oficios de Marco Tullio Ciceram, traduzido por seu irmão o infante D. Pedro, e o da tradução da Retórica feita por Alonso de Cartagena, — livros que são citados na Virtuosa Benfeitoria—, o Prior de S. Jorge de Coimbra, traduziu o De amicitia, largamente utilizado no Leal Conselheiro, e Vasco Fernandes de Lucena o De senectute, vertido para o infante D. Pedro e cujo manuscrito se conserva na Biblioteca da Ajuda, em cópia do século XVII J.

Estes factos, nus e descarnados, são suficientes para testemunharem a voga que os escritos moralizantes de Cícero alcançaram durante a primeira metade do século XV. Inculcam, porventura, que nem só pelas citações direta e expressas se deve avaliar a extensão do conhecimento que Zurara teve da obra do Orador romano, em cuja autoridade se abonava para fazer excursos e glosas do seu próprio pensamento, como se depreende deste passo da Crónica de Guiné (cap. IV): “E porque Tullyo manda que o autor possa razoar sobre seu scripto o que justamente lhe parecer, no VI cap. desta obra farey sobre ello algúa declaraçom” No entanto, tudo o que se diga a tal respeito é do domínio das conjeturas porque o único facto preciso e sugestivo é o de somente haver citado os dois escritos de Cícero que o infante D. Pedro e Vasco Fernandes de Lucena verteram para português.

Plínio, o segundo, que não o velho, é citado na Crónica de Guiné a propósito do rio Nilo, a cujas “maravilhas” Zurara dedicou a larga digressão de dois capítulos (LXI e LXII).

Assinala esta digressão um passo de algum interesse histórico--geográfico. A erudição aparatosa das suas citações, relacionada com as demais referências a sítios do território africano (G, caps. II, IV, VIII, LIX e LXXVII), levou Esteves Pereira a escrever na substanciosa Introdução que antepôs à sua edição da Crónica de Ceuta que o cronista “possuía conhecimentos bastante completos dos sistemas geográficos antigos, sobretudo pelo que diz respeito ao continente de Africa”, particularizando, no que respeita ao Nilo, que “cita as tentativas feitas na antiguidade para descobrir as suas fontes e as conjeturas apresentadas para explicar as suas crescentes” (P. XVIII).

Estes e outros juízos e ilações não podem reportar-se a Zurara pela razão simples de que os referidos capítulos LXI e LXII da Crónica de Guiné foram integralmente traduzidos da General Historia, de Afonso o Sábio. Podem servir como texto para avaliar os conhecimentos da língua castelhana —, não como documento do saber geográfico ou científico do cronista.

Pertence ao Dr. Duarte Leite a averiguação deste plágio, e consequentemente o nulo valor que deve atribuir-se à citação de Plínio, que se encontra no cap. LXI, pois a descrição do Nilo que lhe atribui e parece ter sido tirada da Historia Naturalis (V, 10) “é realmente tradução literal dos capítulos 7.° e 8.° do livro V da General Historia”.

É esta a única citação do nome do escritor romano que se encontra no conjunto da obra de Zurara; daí a ilação tirada pelo Dr. Duarte Leite de que “de Plínio (senior) só conhecia o nome, através da obra espanhola: sua total ignorância da Historia Naturalis patenteia-se na descrição do curso do Nilo, que atribui ao escritor romano no cap. 61. Ela diverge da latina, notadamente quando dá ao rio três braços ao entrar na Etiópia, em vez de dois; demais o cronista copia servilmente todos os erros do texto espanhol, pois escreve Nullidom, allaltetes e Catadupya em vez de Nilidem, alabetes e Catadupa. Reproduz até a palavra espanhola cocadrizes, que deveria trocar por crocodilos, se tivesse à vista o texto latino. Não é todavia de admirar que o ignorasse, pois raros leitores teria em Portugal ao tempo, se algum teve. Nem a Historia Naturalis nem o seu autor são citados pelo erudito D. Duarte nos seus escritos conhecidos, e tão-pouco pelo irmão D. Pedro no Trauctado da uirtuosa benfeyturia; e das poucas livrarias da época, cujos catálogos nos ficaram ou puderam ser reconstituídos, só contém aquela obra o da que deixou o condestável D. Pedro, muito abastecido na mais culta Espanha com a do marquês de Viana”.


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