Sobre a autenticidade dos sermões de Fr. João Xira

São autênticos os sermões Fr. João de Xira insertos na Crónica da Tomada de Ceuta, de Gomes Eanes de Zurara?

Cremos que o problema nunca foi considerado —, e merece sê-lo, mormente pelos acontecimentos que celebram, a saber, o anúncio da expedição a Ceuta, que marca o início da nossa expansão ultramarina, e a investidura na Cavalaria dos infantes que acompanharam D. João I na expugnação da importante posição do Estreito, “chave de todo o mar Medyoterraneo” no dizer da Crónica dos Feitos de Guiné.

São temas de perquirição difícil, por insuficiência de fontes informativas, e cuja complexidade de problemas e de correlações sempre reprimirá o ousio da palavra definitiva. Tentá-los, no entanto, é como que imperativo de quem aperceba os enigmas do ser espiritual e do comportamento perante o Mundo e a Vida do nosso Homem de Quatrocentos, mas nenhum deles nos ocupará agora, apesar do último cativar como facto expressivo do ideal que a Cavalaria assumiu entre nós durante a primeira metade do século XV e cujo incentivo torna plenamente compreensiva a conceção da Vida como sacerdócio que animou a atividade imorredoira da “ínclita Geração”.

O nosso intento atual é modesto: pretende tão-somente proporcionar alguns dados para o estudo dos processos literários do retórico cronista.

Sabido que Zurara, de algum modo disparmente de Fernão Lopes, trabalhou mais com depoimentos de protagonistas e testemunhos verbais de circunstantes que com documentos de chancelarias e de arquivos, a análise do que atribui aos depoentes está para a fidelidade da sua obra como a prova da autenticidade dos documentos está para o valor objetivo das narrações do autor da Crónica de D. João I. Façamos, pois, uma sondagem sobre a fidedignidade de umas páginas, sem intenção de formular um juízo geral e concludente, e tão-somente com o propósito de mostrar como um exemplo que a utilização das Crónicas de Zurara, como fonte de informação histórica, convém que seja precedida de prévia crítica textual e interna.

O nome de Fr. João Xira foi ignorado até 1644. Neste ano, o impressor régio António Alvares publicou na sua oficina a Chronica del Rey D. João I de Boa Memoria e dos reys de Portugal o decimo, a qual compreende três partes: as duas primeiras de Fernão Lopes e a terceira de Gomes Eanes de Zurara. O louvável intento não foi servido com amor da exatidão, porque, como deixou acentuado Braancamp Freire, abundam na edição os erros de cópia assim como as omissões e transposições de períodos. Apesar, porém, de tão graves defeitos, não deve esquecer-se que António Álvares foi o primeiro editor de Fernão Lopes e que a sua edição deu a conhecer ao grande público, a par do escritor de admiráveis méritos, uma multidão de factos até então despercebidos ou ignorados.

Pelo que ao nosso tema respeita, os caps. 51 e 95 da III Parte continham respetivamente um Sermão do Padre Frey João Xira pregado em Lagos, por ordem de D. João I, com o fim de revelar o objetivo da expedição, até então secreto, o qual era a conquista de Ceuta, e de exortar os ânimos à peleja contra o mouro, e um outro sermão do mesmo pregador, proferido em Ceuta após a conquista da cidade.

Zurara dava ao leitor a sensação da fidelidade, senão a de haver feito a transcrição literal, e porque assim aparecia a obra de um pregador até então desconhecido compreende-se que, poucos anos volvidos sobre a edição de Alvares, Fr. Manuel da Esperança, em 1666, na segunda parte da Historia serafica da Ordem dos Frades Menores de S. Francisco na Provincia de Portugal (Lisboa, 1666), tivesse aproveitado pela primeira vez os dados fornecidos pelo cronista, aos quais juntou os de algumas escrituras existentes no Arquivo de Santa Clara do Porto, para elaborar uma biografia de Fr. João Xira.

Desde então o nome do confessor de D. João I figura na história da parenética portuguesa: o sábio Fr. Manuel do Cenáculo Vilasboas apresentou-o como um dos “Prègadores de estimaçaõ” no século XV, e Fortunato de Almeida não se esqueceu de o mencionar na sua História da Igreja em Portugal (t. II, Coimbra, 1912).

Há no relato de Zurara dois problemas diversos: o da exatidão histórica dos factos e o da literalidade das prédicas.

O primeiro está fora do nosso campo, tanto mais que é incontroversa a realidade dos acontecimentos que deram ensejo aos sermões, como é igualmente incontroverso ter sido orador o franciscano Fr. João Xira, que além de confessor de D. João I foi seu conselheiro, pelo menos quando no espírito do rei tomou vulto a ideia de uma expedição a Ceuta, pois da boca do mestre teólogo quis saber se ela era ou não “serviço de Deus”.

O segundo, pelo contrário, entra de pleno no nosso tema e até proporciona farta matéria de inquirição, notadamente sobre a feição peculiar de cada um dos sermões e sobre a compatibilidade epocal do que então se entendia por oratória sacra com o largo estadear de erudição profana e com o pronunciado gosto da afetação retórica de que ambos fazem gala. Estes e outros quesitos estão também fora do nosso assunto, cujo objetivo pretende tão-somente fornecer um dado para o estudo dos processos literários de Zurara, tendo em vista diretamente o sermão pregado em Ceuta na missa solene que celebrou o triunfo das armas portuguesas no local que havia sido até então mesquita maior da cidade mauritana.

Quem lê estas páginas da Crónica da Tomada de Ceuta tem a impressão de estar diante do transunto do sermão: Como o meestre frey Ioham Xira preegou, e como os Iffamtes forom feitos caualleiros, é o título do cap. 96, e no corpo deste capítulo, após a necessária introdução do cronista, o sermão dir-se-ia transcrito: Gloria disse ele [fr. João Xira] sse toma per muitas guisas...

Corresponderá, porém, a impressão à realidade? Foi o cronista pontual e fiel, ou pelo contrário não pôde furtar-se à inveterada balda retórica, compondo, alterando ou retocando os sermões de Fr. João Xira?

Este pequenino problema, que é um aspeto do tema ainda pouco explorado dos processos de redação de Zurara, tem a nosso ver uma resposta decisiva quanto ao texto do sermão que consideramos. Prova-o o seguinte cotejo do texto do sermão segundo Zurara e os lugares paralelos da Virtuosa Benfeitoria:

Cron. da Tomada de Cepta

(Ed. Esteves Pereira, p. 255).

E ajinda contemplamdo açerqua dello, acho que des o fumdamento desta çidade teue o nosso Senhor Deos hordenado de seer aqui posta a cabeça da igreia de toda a terra dAffrica. Porque per duas guisas sse comtem em o nome desta çidade a uerdadeyra essencia do nosso Senhor Deos. A primeira emquamto o seu nome comtem em ssy tres sillabas, que rrepresemtam como nosso Senhor Deos em perssoall ternario he sua essemgia em rroda escprita a. cujo çemtro segumdo diz Hermes, he em todo lugar, a circumferemçia nom he em alguu. E porem som tres ternarios em geerall universidade do mundo, compridos de todo em çircullaçom. Ho profumdo fillosofall theologo gramde Alberto sobre o primeiro capitullo da çelestriall gerarchia poõe tres graaos demtemdimento, per que sse ha de conheger Deos. A segumda maneira he...

Trauctado da Virtuosa Benfeyturia

(Ed. Joaquim Costa, Porto, 1946)

Liv. VI, cap. XI

Deus em sy mesmo com eternal ordenaça em persoal ternario sem desigualeza, he sua essengia em Roda sferica, cuio centro segundo diz hermes he em todo logar per modo Infyndo, e a circonferenga nom he em alguu……………………………………………………………………............................................................................................


?>
Vamos corrigir esse problema