Leibniz e a cultura portuguesa

Discurso lido na sessão comemorativa do terceiro centenário do nascimento do Filósofo.

Sejam as primeiras palavras de reconhecimento pela honra que me permite render ao génio de Leibniz, na tribuna portuguesa mais digna da universalidade do seu saber e dos seus anelos de europeu, a um tempo suspicaz no patriotismo e respeitador da índole peculiar das diversidades nacionais, as minhas gratulações de estudioso da cultura pátria.

Só este é, com efeito, o lugar adequado para rememorar o instaurador de sociedades que promovessem e sustentassem o progresso científico com o sentimento da convivência intelectual, de olhos fitos no rigor e no universalismo da Verdade, tanto mais que, segundo creio, a nossa Academia nasceu e cresceu durante os primeiros decénios sob o influxo da conceção leibniziana, que não pelo incentivo da Academia

Francesa, mais atenta aos dotes e gentilezas do espírito que à teorização e aplicação prática das Ciências.

Se o local é o mais apropriado, não é menos pertinente e justa esta comemoração, mormente quando, ao que parece, o silêncio das Academias a que Leibniz pertenceu cai como afronta sobre a memória do homem que nos tempos modernos mais sensível foi aos apelos da Europa, cujos antagonismos a sua mente superou com pensamentos de conciliação, e cujas dimensões éticas e políticas impregnou de substantividade intemporal e até de atual inquietude. Dir-se-ia assistir-se à ressurreição do desdém que o acompanhou à sepultura e Fontenelle, em 1717, foi o primeiro a arrostar com o fulgor da exatidão e com o sorriso peculiar à inteligência francesa do seu século. Se assim é, nós que fruímos nesta Casa a liberdade de opinião, que é uma das razões de ser da nossa Companhia, e logramos a dita de viver à margem da fogueira de rancores, de ruínas e de extermínios que prostraram a Europa, embora soframos das desconfianças que ainda a humilham, podemos e devemos honrar em Leibniz o Sábio que possuiu todos os saberes e rasgou a senda de ciências provindouras, o Filósofo que procurou a unidade mediante a superação de todos os contrastes e encontrou na harmonia a suprema verdade metafísica, sem aliás aniquilar a realidade viva e concreta do indivíduo, o Europeu, sempre atento ao apelo da conciliação e da unidade espiritual do Mundo, e o Alemão, cuja compleição mais se aproxima da nossa mentalidade latina, cuja índole brotou do génio germânico — do de Weimar, bem entendido, sem o qual a cultura não alcança profundidade e plena interiorização e cujo ardente patriotismo não opôs barreiras à visão do cosmopolitismo intelectual.

Para falar conscientemente desta mente única, cuja universalidade de conhecimentos só é comparável à de Aristóteles e cuja fecundidade criadora não tem paralelo, importa, a um tempo, dispor de dotes, que permitam apreender a imensa diversidade das suas fulgurações, e possuir um saber enciclopédico, sem fronteiras nem preferências. Tudo isto me está vedado, porque se imagino ter chegado à compreensão das raízes em que Leibniz firmou o exercício do pensamento, das aporias que procurou superar, e das diretrizes em que orientou a reflexão, sei de certeza que existem na sua Obra largas zonas que exigem aprendizagem especializada para se poderem assimilar cabal e inteiramente.

Onde a mente da nossa era de especialização capaz de acompanhar todas as incidências e de medir o alcance de todas as ideias e reflexões de uma capacidade prodigiosa que ultrapassou todos os contrastes da atividade intelectual e que com idêntica desenvoltura tanto se aplicou à invenção matemática como à interpretação jurídica, à meditação teológica como à investigação histórica, à exatidão lógica como à teoria física, à especulação metafísica como à ação política, à observação geológica como à filologia comparada, à sistematização filosófica como à heurística documental?

Permiti, por isso, que em vez de percorrer os sulcos que este génio universal gravou indelevelmente no saber e de seguir os surtos fulgurantes que mediante a noção de continuidade e da aplicação dos princípios supremos do conhecimento operou na Ciência e na sistematização metafísica, me ocupe sumária e sinteticamente de um tema marginal, aliás colhido diretamente na sua obra: o conhecimento que Leibniz teve de assuntos portugueses e da influência do seu pensamento filosófico em Portugal.

Como grande parte dos temas leibnizianos, o primeiro destes assuntos oferece a dificuldade de o não podermos seguir em toda a extensão temporal e ideológica, dada a assombrosa massa de inéditos de Leibniz e a dificuldade atual de manuseio de algumas edições das suas obras.

Esta é a primeira dificuldade, por assim dizer material, porque o contato com os escritos logo faz surgir outra, mais complexa e subtil, derivada da própria individualidade. Desde a mais tenra idade, Leibniz foi um leitor insaciável e de titânica capacidade de trabalho. Os seus olhos, de universal curiosidade, não liam como os de toda a gente, porque cedo se habituaram a prolongar a leitura recriando como próprio o pensamento lido, relacionando-o e integrando-o num pensamento mais compreensivo ou mais extenso. Daí ter atingido precocemente o valor dos princípios fundamentais e normativos e logo haver conferido ao conjunto de conhecimentos que ia adquirindo as feições veneráveis e antigas da unidade da Verdade. Uma mente que assim se forma e disciplina não tolera que se considerem os factos que irei apontar como fontes influidoras, no sentido preceptivo e determinante do termo. Não; tal equívoco equivaleria a interromper o fluir de um pensamento pujante na criação original e sobretudo a destruir o que é peculiar da meditação de Leibniz: a harmonia e a correlação de todas as coisas, de todos os eventos, de todas as ideias.

Ao meu conhecimento atual, Leibniz não teve relações amistosas ou epistolares com nenhum português, nem o desempenho de comissões políticas o conduziram a negociações com os nossos governantes ou autoridades. É. possível que o acaso das viagens e as frivolidades da cortesia palaciana o tivessem aproximado de compatriotas nossos —, e de um caso sabemos, ocorrido nos fins de Agosto de 1708, em Detmold, na Westfália, com a hospedagem que o Conde de Lippe ofereceu à noiva de D. João V, D. Mariana de Austria, e à sua aparatosa comitiva. Aí conversou, decerto, com o Conde de Vilarmaior e demais personalidades que o acompanhavam, mas do encontro parece que somente estabeleceu relações, cujo alcance nos escapa, com o memorialista da comitiva, o P.e Francisco da Fonseca, da Companhia de Jesus, e pro curador em Lisboa e Viena pelas províncias da índia Oriental. Só a universal curiosidade do sábio e a incidência acidental de alguns problemas, projetos e circunstâncias o conduziram, pois, à consideração do que, por comodidade, chamaremos assuntos portugueses.

Portugal aparece nos escritos de Leibniz como realidade política autónoma, jamais confundida ou absorvida no conceito genérico e equívoco de Hispânia, e como elemento e partícipe da cultura universal.

Como realidade política, reconheceu o papel de Portugal no advento do Mundo moderno com a descoberta do caminho marítimo para a Índia, na qual via a influência da bússola e do livro de Marco Polo, e a alta significação de D. Manuel, que incluiu, com Fernando de Aragão, Henrique VIII, Gustavo Adolfo, da Suécia, e Luís XIV, de França, entre os governantes que estimularam o comércio mundial e enriqueceram os seus Estados.


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