Leibniz e a cultura portuguesa

Todos estes temas talvez tenham deixado vinco mais ou menos percetível na metafísica leibniziana; no entanto, pelo que aos nossos restauradores da Escolástica respeita, mal pode ir-se além da opinião de, na juventude, neles haver apreendido principalmente a exposição da silogística e a fundamentação da ontologia, e na derradeira quadra da vida, como em breve direi, sugestões, senão verdadeiras conceções teológicas.

Quem tão reiterada e profundamente se deteve no exame da dedução silogística não podia ter olvidado o lógico que sistematizou a teoria deste raciocínio, principalmente em ordem à didática da argumentação polémica. Refiro-me às Summulae Logicales de Pedro Hispano, cujo nome Leibniz inscreveu no Catalogus das invenções lógicas como criador da “gramática filosófica”, isto é, da teoria da suppositio, ou da significação verbal, a qual assinala o primeiro ensaio de semântica e que o nosso famoso compatriota expôs no Tractatus modernorum do seu De parvis logicalibus.

A leitura das Instituições Dialéticas de Pedro da Fonseca reporta-se cronologicamente à adolescência, valendo, segundo cremos, pela contribuição à ars demonstrandi e cuja insuficiência o génio de Leibniz cedo apreendeu, ao reconhecer a necessidade de uma fecunda ars inveniendi; a leitura das Súmulas Lógicas, porém, parece ter tido lugar, mais tarde, talvez com o intento de Leibniz contrastar as suas próprias conceções.

Com a inscrição na Faculdade jurídica de Lípsia, aos 15 anos, em 1661, os interesses do espírito e os deveres da escolaridade rasgam-lhe novos horizontes e dilatam-lhe o âmbito das curiosidades, sem aliás o desprenderem das que anteriormente haviam alvorecido. A avaliar pelas citações dos seus livros jurídicos, única fonte de informação nesta quadra, é de crer que foi pelos anos de estudante jurista que Leibniz leu escritos de António Gouveia, de Francisco Sanches e do bispo Jerónimo Osório.

Com efeito, no Specimen difficultatis in jure, seu quaestiones philosophicae amoeniores ex jure collectae, de 1664, no qual insiste particularmente sobre a necessidade de vincular o Direito à Filosofia, invoca a autoridade do nosso famoso António de Gouveia, nas Lectiones variae Iuris Civilis, para firmar a opinião de que os animais não são, em rigor, sujeitos de Direito, e cita duas vezes com objetivo crítico o Quod nihil scitur de Francisco Sanches.

O discutido filósofo e médico, cujo pensamento exprime admiravelmente a crise mental precursora da modernidade metodológica e científica, não teve a simpatia de Leibniz, sem embargo da atenção que lhe dedicou na polémica com Clávio a propósito da necessidade de sujeitar à fieira da crítica os princípios em que assenta a geometria de Euclides. Compreende-se. Para quem, como Leibniz, não concebia que as verdades pudessem ser antagónicas e condensara o mais prolongado esforço na conciliação do conhecimento científico com os valores ético-religiosos, o relativismo crítico de Sanches, em si e nas implicações que desentranhava, tinha necessariamente de ser repelido como determinação intrinsecamente limitada e, portanto, de consequências restritas ou falsas. É o que se depreende das duas referências ao Quod nihil scitur feitas no Specimen difficultatis, censurando na primeira que Sanches tivesse inferido da diversidade dos temperamentos a impossibilidade dos homens terem uma só essência, com o que mutilara a verdade e zombara da fé, e na segunda houvesse afirmado a indivisibilidade da identidade, quando cumpre distinguir a identidade formal da identidade essencial, a cujo conceito não repugna a mudança acidental.

Se, como dissemos, Leibniz justificou no Specimen difficultatis in jure as relações do Direito com a Filosofia, no Nova Methodus discendae docendaeque jurisprudentiae vai mostrar as relações da Jurisprudência com a História. Esta obra notável pela conceção da Jurisprudência, como aplicação da Lógica a questões morais, e na metodologia jurídica, e que talvez não tenha sido alheia à reforma pombalina da Universidade, sobretudo na parte em que preconizava a inserção da História no ensino e na interpretação do Direito, é seguida de uma copiosa bibliografia histórica, na qual indica Jerónimo Osório como prestável ao canonista. Leibniz, que redigiu esta bibliografia em viagem, em 1667, sem o socorro de um apontamento, não especifica a obra que tinha em vista, patenteando, não obstante, como em tão vasto memorando se lhe havia gravado o nome do famoso historiador e moralista.

A partir deste ano, os incidentes variados da sua vida e, sobretudo, a atração de novos problemas ligados à modernidade, como que o distanciaram das páginas de autoria portuguesa, em regra mais interpretativas do passado que perscrutadoras do futuro, dado o nosso geral desinteresse em pensar pensamentos acrónicos e atópicos. É possível que a universal curiosidade do seu espírito e o desempenho dos deveres de bibliotecário que enriquecera a biblioteca de Wolfenbütel, onde se encontram raridades da nossa bibliografia como o Tratado da Esfera, de Pedro Nunes, lhe fizessem pousar os olhos sobre algumas; mas que lhe poderíamos oferecer de sugestivo para o desenvolvimento das conceções matemáticas, lógicas, físicas e epistemológicas que então lhe dominam a mente, sobretudo após a estadia em Paris, em 1672, e que por demais nasceram com a sigla original do génio?

Em todo o caso, talvez seja desacertado conjeturar a influência do método que entre nós Cristóvão Borri propôs para a determinação da longitude mediante o mapa das linhas magnéticas (Tractus chalyboclytici) sobre a crítica de Leibniz à teoria cartesiana do magnetismo terrestre e, sobretudo, no projeto de uma Sociedade magneto-matemática destinada ao levantamento da carta magnética do globo em ordem à resolução do velho problema da longitude.

Se por estes anos se desvanecem as alusões a escritos de portugueses, nem por isso Portugal, como Estado, deixou de ser presente ao espírito de Leibniz, ou mais exatamente às suas congeminações e planos políticos.

 Com efeito, nos escritos que redigiu por 1670-1672 para precaver a Alemanha dos ataques de Luís XIV, como o Jetzige Bilanz von Europa, a Securitas publica interna et externa, e o famoso projecto de conquista do Egipto, que Napoleão quis conhecer, não deixou de considerar a possível atitude de Portugal perante a realização dos seus projetos.

Tais alusões, que é de crer possam ser ampliadas com outros dados colhidos na correspondência epistolar, pertencem de certo modo ao domínio da curiosidade. Não assim as que vão ser suscitadas pelo intento da conciliação das Igrejas cristãs e pelo empenho na expansão do Cristianismo na China. São de outra índole, de mais vasto alcance e densa substantividade, a ponto de inculcarem por mais conforme a designação de influências. Com elas, Leibniz mostra ter sido sensível à irradiação de duas manifestações características do Portugal quinhentista: a especulação teológica e a ação missionária.

Com a ressalva das variações e vicissitudes inerentes à refrega das ideias e à temporalidade das circunstâncias, pode dizer-se que a inteligência portuguesa jamais deixou de exprimir o anelo de firmar a existência humana numa ontologia em que confluíssem o natural e o sobrenatural. Nos tempos imediatamente posteriores ao Concílio de Trento, o anelo revigorou-se com o incentivo da ação militante e com o alento da problematicidade relativa à essência e aos estados do ser humano. A designação de Segunda Escolástica, que já se deu a estes rasgos da cultura portuguesa e espanhola no advento da modernidade, afigura-se-me exata, cronológica e intelectualmente, mas qualquer que seja o respetivo perfil histórico e valor intrínseco o que agora importa notar é a atenção reiterada que Leibniz lhe dispensou. Na mocidade, vimo-lo já, foi a aprendizagem da Lógica, na qual o seu génio abriria sulcos e clareiras indeléveis, que o conduziu até ao manual de Pedro da Fonseca, o comentador eruditíssimo da Metafísica de Aristóteles, sobre a qual descansava a conceção do mundo e do ser; agora, na maturidade plena, foi o imperativo da harmonia racional e o sentido unitário da verdade, que se comporta gradações, exclui antagonismos, ou por outras palavras a conciliação da razão e da fé, da Natureza e da Graça, como então se dizia, que o trouxeram de novo até às páginas dos nossos teólogos e missionários.


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