Leibniz e a cultura portuguesa

Não é talvez possível fixar-se com algum rigor a cronologia destas leituras, mas qualquer que haja sido temos por seguro que foram mais frequentes a partir de 1692, isto é, quando Leibniz iniciou a correspondência com Bossuet sobre a reconciliação de católicos e protestantes, a antiga curiosidade pela civilização chinesa adquiriu no seu espírito novo surto e dimensões, e escreveu a Teodiceia, vinda a público em 1710.

Cada um destes temas impõe a consideração própria e desenvolve-se com tal amplitude que não é possível enfeixá-los na brevidade de alguns juízos gerais; por isso, irei considerá-los exclusivamente em função das relações que apresentam com a nossa cultura, sob o ditame da concisão inerente às circunstâncias em que me encontro.

Leibniz sentiu intensamente a cisão da Respublica Christiana, e como filósofo que não concebia que as verdades, qualquer que fosse a sua natureza, pudessem ser antagónicas porque sempre se haveriam de conciliar numa harmonia que as situasse e compreendesse, pensou e atuou no sentido da reconciliação das diversas confissões cristãs, na convicção de que ela traria a paz das consciências, a expansão universal do Cristianismo e, mediante a justificação racional da Revelação, a unificação da Humanidade sob uma só fé. É neste esforço omnímodo, em que o seu génio brilha com novas fulgurações, que se acrescentam às que a meditação das implicações do princípio da continuidade — Natura non facit saltus — lhe havia revelado na Matemática pelo trânsito, como ele próprio diz, da Geometria à Física, com a descoberta do cálculo infinitesimal, na Psicologia, com a descoberta do inconsciente, isto é, o que precede a perceção consciente, na História Natural, com a historicidade da Terra, da qual os fósseis eram, a seu ver, testemunho que voltamos a encontrar na universal curiosidade de Leibniz a debruçar-se sobre o pensamento e sobre a atividade de alguns compatriotas nossos.

Como quase sempre ocorre corri a génese das ideias leibnizianas, não é possível fixar datas rigorosas; permito-me, em todo o caso, pelo ditame da clareza e ordem, assinalar os anos de 1690, 1692 e 1710, como aqueles em que os contatos foram mais íntimos e de algum modo assíduos.

Em 1690 dirigiu a Pelisson as objeções acerca da tolerância e das divergências teológicas —, incidente, por assim dizer, da controvérsia com Bossuet. Fiel ao método que havia seguido, a um tempo por motivos dialéticos e por inclinação natural, Leibniz procurara mostrar a possibilidade da coincidência de ideias relativamente às formas mais simples e primitivas da fé, as quais são também as mais fundas. E assim observava ao bispo de Meaux que pode “alcançar-se a salvação em todas as religiões, contanto que se ame verdadeiramente Deus acima de todas as coisas, com amor de amizade fundado nas suas perfeições infinitas”.

Leibniz foi constante nesta conceção da caritas como requisito essencial da salvaçãoinvocando-a reiteradamente como princípio de união religiosa e dela deduzindo a salvação dos infiéis, o conhecimento implícito do Redentor e a essência da catolicidade, que a seu ver, como é óbvio, não consistia tão-somente na comunhão externa com Roma. Qualquer que seja o valor e a ortodoxia desta conceção, da qual Leibniz não deduzia talvez a equivalência das religiões, mas somente que a caritas e a contrição corrigiam a falta do conhecimento e da prática da verdadeira Religião, o que cumpre notar é que quase sempre, senão sempre, a apresentou sob a autoridade de Diogo de Paiva de Andrade, teólogo famoso que sobressaíra no Concílio de Trento e cujos livros alcançaram larga difusão e crédito. Sustentara o nosso ilustre compatriota na dissertação sobre o Pecado, que constitui o livro III das suas Explicações Ortodoxas, que se haviam salvo alguns pagãos por haverem tido “a fé implícita”, e foi esta opinião, que o luterano Martin Chemnitz acusara de plagianismo, que Leibniz reiteradamente invocou, pelo menos a partir de 1690, e que Pelisson examinou e discutiu na réplica a Leibniz.

Com o apelo à autoridade de Paiva de Andrade, que indiferentemente invocou perante luteranos e católicos, e sempre com o maior louvor para o nosso teólogo, Leibniz acolhera uma das manifestações mais expressivas da inquietude religiosa do nosso século XVI, dirigida a um tempo para a problematicidade teológica e para a expansão missionária. Baldado o empenho da reconciliação das Igrejas, de que as objeções a Pelisson haviam sido incidente secundário em confronto do grandioso debate com Bossuet, é nas ideias orientadoras da ação missionária no Celeste Império que Leibniz reaviva a confiança de visionário da unidade intelectual e moral do Mundo. A nova aventura liga-se a Portugal como nenhuma outra manifestação do seu génio fulgurante, a ponto de o fazer divulgador e prefaciador de um livro português sob o título atrativo mas inexato de Novissima Sinica.

Saiu a público este livro em primeira edição no ano de 1697, sendo curioso (e somente curioso) notar que as preocupações que ele exprime não tolheram Leibniz de se ocupar pela mesma ocasião, ou quase, do valor terapêutico da ipecacuanha, na memória De nova antidysenterico americano, publicada nos Acta eruditorum de 1696, e na qual deixou em suspenso se o conhecimento da então famosa raiz procedia dos Lusitanos, isto é, do Brasil, ou de Hispanos, isto é, do Peru.

Levaria longe a análise do que a Novissima Sinica implica; por isso, acentuarei apenas o que reputo essencial.

Se o século XVI foi o século da América, quase se pode dizer que o século XVII foi o século da China, pelo menos sob o ponto de vista dos horizontes intelectuais, abertos a um tempo para a antiguidade do Homem e para o futuro moral da Humanidade. A atração do Oriente e a evangelização cristã não nasceram no século do pensamento sistemático e do surto glorioso da conceção mecânica da Natureza; mas é indiscutível que o interesse pela cultura e pelo destino do Celeste Império cresceu e se transfigurou quando em 1654 o imperador decretou que se adotasse a Astronomia da Ciência europeia. A partir de então impôs-se, na China, no chamado Tribunal das Matemáticas, de Pequim, a existência de missionários que fossem astrónomos, sendo os primeiros, como é sabido, jesuítas portugueses, e na Europa, a convicção de que só pelos caminhos da Matemática e da Astronomia se penetraria e por fim dominaria tão distante e populoso império. Para quem, como Leibniz, sempre ardeu no desejo de que se rompesse a treva asiática com a claridade europeia, o novo proselitismo não podia deixar de ter ressonância original e prospetiva.

Demais, com o conhecimento do que se passava na China, ou diziam passar-se, surgira naturalmente o paralelo da velha civilização oriental com a nossa, e do paralelo irrompeu na Europa dos fins do século XVII o incêndio das paixões discordantes e a controvérsia das ideias. Um dissentimento a todos os outros sobreleva —, a querela de Jesuítas e dominicanos acerca dos ritos chineses, a qual no fundo traduz a divergência de critério orientador da evangelização, mas em torno dela gravitava uma multidão de desacordos acerca do culto de Confúcio, do significado do culto dos mortos, do sentimento dos termos chineses que designavam Deus, da salvação dos infiéis, do valor da cronologia bíblica perante a antiguidade da cronologia sínica, da existência de povos ateus, universalidade do dilúvio, etc., etc.


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