Leibniz e a cultura portuguesa

Cada qual interpretava a seu modo os factos e informes que Longobardi, Couplet, Bouvet, Magalhães, Navarrete, Verbiest, etc., etc., revelavam. Podem, no entanto, enfeixar-se, sem violência e grosso modo, as opiniões acerca da religião chinesa em torno da conceção dos jesuítas, que nela viam o testemunho da crença deísta e espiritualista, dos dominicanos, que pelo contrário só encontravam sinais de materialismo e de ateísmo, de Malebranche, que estabelecia a afinidade com a metafísica de Espinosa, e dos incréus e libertinos, como Bayle, para quem eram patentes a noção da eternidade da matéria, o ateísmo primitivo e a moral independente da religião. No apaixonado debate que está no alvorecer do iluminismo enciclopedista e para o qual Portugal concorreu com o alvoroço excitador das primícias, nas páginas desconcertantes de Pernão Mendes Pinto e com a minúcia das relações e das cartas ânuas, Leibniz lançou também a sua mensagem, coerente com o seu passado de teorizador da unidade da cultura e com os postulados da sua metafísica.

A mensagem tem por assim dizer duas faces: uma prática, ou instrumental, outra teórica, ou doutrinal. A instrumental incidia sobre a ação evangelizadora, e sob este aspeto Leibniz defendeu as missões da Companhia de Jesus, fiel à velha simpatia pelos jesuítas, não isenta porventura da ambição deles lhe propagarem pelo ensino as conceções filosóficas, embora no íntimo desejasse que a evangelização pudesse ser feita por protestantes alemães.

A conceção doutrinal assentava na ideia de que a evangelização não devia mostrar aos chineses que eles viviam no erro, mas pelo contrário, partindo da unidade do espírito humano, insistir nas analogias existentes entre a religião que professavam e o Cristianismo. Daí os escritos que dedicou ao assunto, criticando nuns o pretenso ateísmo dos chineses, e mostrando noutros, notadamente a propósito da interpretação do Li, que a filosofia chinesa está mais próxima da teologia cristã que a conceção helénica da eternidade da matéria.

Foi no desenvolvimento destes estudos que Leibniz se encontrou perante a ação e os escritos de missionários portugueses, ora para os criticar, como ao jesuíta Manuel Dias, por seguir a opinião de Longobardi sobre o ateísmo dos chineses, ora para se documentar sobre o sentida da palavra Li, designadora do primeiro princípio, invocando o juízo de Lucena na História da Vida de S. Francisco Xavier. Da nossa bibliografia sínica, porém, nenhum livro impressionou tanto Leibniz como a Relação da liberdade da lei de Deus no império da China, que o P. José Soares, reitor do Colégio de Pequim, escreveu e Juan de Espínola traduziu para castelhano e deu ao prelo em 1696, em Lisboa. Compreende-se.

O P. Soares dava notícia pormenorizada do decreto de 1692 pelo qual o imperador Kang-hi estabelecia a tolerância religiosa, enaltecendo consequentemente a ação dos jesuítas na China e rasgando na Europa a perspectiva admirável da conversão do imperador e como seu efeito a cristianização de toda a China. Que outro acontecimento mais propício para exaltar no espírito de Leibniz o sempre vivo anelo da expansão europeia e para produzir aqueles clarões fulgurantes que num só facto via tudo o que o precedera e numa só ideia tudo o que ela continha e se lhe seguia?

Por isso, mal teve conhecimento da obrinha do nosso compatriota, que lhe chegou às mãos em versão latina oferecida por um padre jesuíta, de nome Amaral, apressou-se a divulgá-la, prefaciando-a e publicando-a em 1697 sob o título de Novissima Sinica, historia nostri temporis illustratura. In quibus de Christianismo publica nunc auctoritate propa-gato missa in Europam relatio exhibetur, deque favore scientiarum Europaearum ac moribus gentis et ipsius praesertim Monarchae, tum et de bello Sinensium cum moscis ac tace constituta, multa hactenus ignota explicantur.

Como quase todos os escritos de Leibniz, o prefácio está impregnado de sentido prospetivo, rasgando a um tempo horizontes à cristianização da China e à política da Europa, porque, dizia, se nós enviamos à China missionários que lhe ensinem a verdadeira teologia, seria conveniente que ela nos enviasse políticos sagazes que nos ensinassem a arte de governar e a teologia natural que a conduziram a tão subida perfeição.

Poucos anos volvidos sobre as páginas deste prefácio, tão honroso para a evangelização, na qual sobressaía pelo prestígio da prioridade e das obras a missão portuguesa, Leibniz voltou de novo a recordar conceções de portugueses, nos Ensaios de Teodiceia, publicados em 1710. Destinados a refutar as opiniões de Pierre Bayle acerca da doutrina da Providência, designadamente a relação da presciência divina com a liberdade e a perfeição de Deus com a existência do mal, Leibniz não alude a factos da História natural ou civil; apenas a ideias, cujo valor informativo ou dialético surge naturalmente pela posição que ocupam no desenvolvimento da argumentação.

A primeira respeita a Pedro da Fonseca, não como lógico, mas como teólogo, a propósito do problema das relações da liberdade humana com a presciência e omnipotência divinas. Em rigor, Leibniz expõe a teoria da ciência média segundo Luís de Molina, no De liberi arbitrii cum gratia donis concordia, mas incidentalmente refere-se à autoria da famosa doutrina que tem o nome do mestre da Universidade de Évora, para lhe associar o nome de Pedro da Fonsecas sem aliás se pronunciar sobre qual foi verdadeiramente o autor da teoria.

A segunda invoca uma vez mais Diogo de Paiva de Andrade para acentuar que nas objeções a Pelisson citara a opinião do celébre theologien portugais” com o fim de mostrar que entre os teólogos católicos havia quem sustentasse que um ato sincero de caritas basta à salvação. Este é o facto nu; mas quando se atenta na conceção leibniziana do amor de Deus como fim ideal da atividade monádica, é-se levado a pensar que a opinião do nosso teólogo, se não foi uma das fontes donde ela brotou, parece ter sido, pelo menos, uma doutrina que a nutriu.

Mais duas alusões se encontram, uma ao Comentário dos Conimbricenses ao De Interpretatione, outra a Oróbio de Castro, como refutador de Bredemburgo. Ambas importam ao esclarecimento do conceito de necessidade, isto é, à distinção leibniziana da necessidade geométrica e da determinação pela razão do melhor, mas em rigor não pertencem a Leibniz porque procedem diretamente de referências expressas de Pierre Bayle.

Com a Teodiceia, síntese suprema do esforço de conciliação das exigências lógicas do racionalismo com os valores ético-religiosos do Cristianismo, se assinala, porventura, o derradeiro contato de Leibniz com a nossa cultura e com a nossa história. Quais hajam sido as dimensões intelectuais deste contato é talvez impossível precisar com algum rigor, dada a conformação do espírito de Leibniz, no qual as ideias eclodiam com pujante fecundidade e o genial poder de correlação transpunham com incrível atualidade o futuro para o presente, mormente quando este se lhe apresentava com o perfil da clareza. Por isso, não me arriscarei ao jogo sedutor das hipóteses, e sem perder o sentido da exatidão e da firmeza, que ao presente me seduz e até considero essencial ao progresso dos estudos da nossa cultura, passarei a ocupar-me da influência que a filosofia de Leibniz exerceu nalguns dos mais grados representantes do pensamento português.

Leibniz colheu na nossa literatura factos, ideias e possivelmente sugestões; a inteligência portuguesa colheu na sua obra o que mais importa à atividade intelectual: alento especulativo, problematicidade incitante, ideias normativas.


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