Leibniz e a cultura portuguesa

A influência direta cremos ter sido tardia, talvez posterior à coletânea de Dutens, de 1768, existente em quase todas as nossas grandes bibliotecas públicas. Até então é possível que alguns escritos tivessem sido conhecidos, muito principalmente os publicados nos Acta eruditorum, de Lípsia; tudo concorre, porém, para inculcar que foi mediante Wolff, o sistematizador didático do leibnizianismo, que primeiramente se divulgaram entre nós algumas teorias do filósofo. Qualquer que seja, porém, a via por onde penetrou o mais remoto conhecimento digno de ser considerado pela sua densidade, temos por seguro que é na obra de Luís António Verney, ou o pensamento militante, de Silvestre Pinheiro Ferreira, ou o pensamento que se observa, de Pedro de Amorim Viana, ou o pensamento que disseca, e de Antero de Quental, ou a consciência que se interroga e sofre, que cumpre examinar algumas conceções de Leibniz.

A mais antiga referência talvez caiba a Jacob de Castro Sarmento, em 1737, na Teórica Verdadeira das Marés. Tem o mero pretexto da curiosidade, porque o panegirista de Newton não lera uma linha de Leibniz e dera por descontado sem sombra de crítica do que se escrevia em Inglaterra, que lhe não pertencia prioridade nem originalidade na descoberta do cálculo infinitesimal.

É, com Verney que nos aparece o primeiro testemunho sério. Em 1751, quando dera a público o Apparatus ad philosophiam et theologiam, não havia ainda lido uma página de Leibniz, de cuja filosofia apenas acentua a feição eclética; depois, na Metafísica, em 1753, o conhecimento continua a ser de segunda mão, expondo sumariamente a teoria da harmonia pré-estabelecida, que considera paradoxal; por fim, no De re physica, em 1769, já com mais extensa e direta informação, embora se apoie principalmente na Ontologia de Wolff, expõe e critica a teoria da mónada. Em rigor, a crítica de Verney dirige-se mais a Wolff, o sistematizador da filosofia leibniziana, do que ao próprio Leibniz, de quem mostra conhecer apenas a correspondência com Clarcke e com Kortholt; mas com ser limitada, não deixa de acusar penetração e de assinalar na nossa literatura o exame da conceção monádica como explicação física e do princípio da razão suficiente como seu fundamento.

Com Silvestre Pinheiro Ferreira, o pensador de digna austeridade que há um século honrou a inteligência portuguesa, saímos da preocupação didática para ouvir o diálogo direto com os problemas. Por isso, nem sempre é transparente a influência leibniziana, mas ela existe sem dúvida no âmago de algumas noções nucleares, designadamente na de universo, que no Essai sur la Psychologie Pinheiro Ferreira considera “um sistema no qual cada fenómeno num momento dado tem como razão parcial do estado que o universo terá no momento seguinte”.

O vinco leibniziano é claro, encontrando-se ainda, como é possível, na estrutura das noções de liberdade e de contingência expostas no mesmo Essai.

O sensualismo que impregnou a epistemologia de Silvestre Pinheiro Ferreira assim como a sua posição de político liberal, a quem cumpria ser mais atento ao apelo dos povos que à vontade dos poderosos, não o encaminhavam para a intimidade com a filosofia de Leibniz, cujas dimensões políticas sofrem a limitação da prudência suspicaz e acomodatícia; não assim Pedro de Amorim Viana, o pensador que no terceiro quartel do século passado discorreu com penetração e clarividência sobre os fundamentos da atividade económica, submetendo a apertada crítica o Sistema das Contradições Económicas de Proudhon e, sobretudo, as relações da razão com a fé. Quaisquer que sejam os motivos da constância deste último problema nas suas reflexões de filósofo independente, pois além de artigos esparsos dedicou-lhe um livro sob o título de Defesa do Racionalismo ou Análise da Fé, publicado em 1866, temos por sem dúvida que entre eles se deve contar a assídua meditação da obra de Leibniz. Até ao seu tempo, creio que Amorim Viana foi o português que mais reiterada e extensamente se debruçou sobre as páginas da volumosa edição de Dutens, resultando deste convívio repensar por via própria problemas e soluções do autor da Teodiceia. Jamais escondeu a sua admiração por ele; no entanto, com razoada independência, se umas vezes coincide nas opiniões, como quando Leibniz esclarece Pelisson e o Príncipe Eugénio sobre as relações da Natureza e da Graça, outras critica-o, como quando o filósofo refuta Bayle na Dissertatio de conformitate fidei cum ratione. Os debates metafísicos desta natureza furtam-se ao apanhado dos resumos e ainda mais, talvez, aos discursos académicos, cujo ritmo de pensamento desfalece com a frialdade da análise; no entanto, arrisco-me a dizer, à maneira de síntese, que se Leibniz fundamentou a conformidade da fé e da razão principalmente no interesse da fé, Amorim Viana, pelo contrário, repensou a mesma conformidade principalmente no interesse da razão.

Teoria da mónada, continuidade e correlação de todos os estados do Universo em cada instante, conciliação da razão e da fé, tais são as teses leibnizianas que até agora vimos ser de mais profundo sulco entre nós; com Antero de Quental, a mente do nosso século XIX que mais intimamente sentiu a necessidade de uma explicação total, do ser e do destino humano, vai surgir outro vinco leibniziano com a noção de força como energia atual, e não mero princípio abstrato, e com a necessidade dialética de conciliar a série da causalidade com a ordem <Ia finalidade. Sempre se discutirá, com razões quase equivalentes, se constituição de Antero foi poética ou filosófica, mas seja qual for a solução, e não é esta a hora de a apurar, temos por sem dúvida que a reflexão filosófica jamais adquiriu na sua mente o alor da estesia poética, embora a recíproca seja verdadeira, isto é, os seus versos hajam sido por vezes a plastização de conceções filosóficas introvertidas. Por se não ter resignado a conceber o Universo sem significação e a consciência humana sem essência nem destino, Antero foi pedir ao pensamento sistemático a resposta que lhe permitisse dizer com certa tranquilidade lógica que a Natureza tem por fim a gestação e a expansão da consciência, ou por outras palavras que há continuidade da matéria ao espírito e do estar ao ser. Por isso, não surpreende que, segundo sua própria confissão, houvesse lido e meditado a Monadologia, e se tivesse detido na crítica leibniziana da conceção mecanista da Natureza como explicação total do Universo, nela aprendendo que a eliminação da causa final torna difícil a reconciliação da filosofia com o amor de Deus, ou para empregar as mesmas palavras das Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, que “o drama do ser termina na libertação final pelo bem”.

Com Antero remato este breve retrospeto, o que aliás não significa que a influência leibniziana tenha tido a sua última manifestação na meditação do nosso poeta-filósofo. Não terminou, porque é precisamente nos nossos dias que em português se divulga e esclarece o pensamento autêntico do genial filósofo e alguns jovens o estudam com apreciável cuidado; e não terminará, por estar naquela linha de permanente atualidade que obriga todo o pensador a defrontar-se com ele, para alcançar o juízo refletida e plenamente consciente.


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