Manuel Fernandes Tomás, jurisconsulto

Esta foi a obra meritória de Fernandes Tomás com o Reportório. À sua consciência de magistrado repugnava, como que visceralmente, o arbítrio e até a possibilidade de ele se insinuar sob o manto dos “princípios gerais de equidade”, pelo que desejava as leis tão especificadas e claras quanto possível. Quem assim sentia e pensava, tinha por ofício a aplicação das Leis, não perdera hábitos de trabalho e prezava, e:mbora apenas pragmaticamente, a investigação histórico-jurídica, não podia deixar de concorrer para que o caos da legislação extravagante se dissipasse com o compasso da clareza e do rigor.

Fernandes Tomás começou por coligir, para seu uso pessoal, algumas notas sobre as leis de mais frequente aplicação nos tribunais, mas, escreve, “ganhando com o tempo mais extensão o que na sua origem fora unicamente uma brevíssima indicação ou remissão dos poucos lugares que examinava, adverti que seria porventura de alguma utilidade pública sair à luz com estes tais ou quais apontamentos, por entender que, à míngua de outros mais ricos neste género, poderiam merecer a estimação, principalmente dos que frequentam o foro; e havendo que então seriam dignos de maior apreço, quando fossem mais exatos, separei o que me pareceu achar-se nestas circunstâncias”.

Com este intuito preparou duas obras: uma, “tendo por fim dar a sentença ou notícia dos artigos da legislação e diplomas de que me foi possível fazer o exame ou ter conhecimento”, outra, com o objeto de indicar nas Ordenações, pela ordem dos livros, dos títulos e parágrafos, e na legislação extravagante pela sua cronologia, “as declarações, ampliações e restrições que tem havido sobre cada artigo, apresentando por tal modo o estado final e último... de sorte que se possa ter presente em cada § uma espécie de história sumaríssima e abreviada na legislação posterior, que com ele se acha em alguma relação imediata ou analógica...”.

Só a primeira foi impressa, constituindo o Reportório, que dedicou ao insigne Reformador-Reitor da Universidade de Coimbra D. Francisco de Lemos, a quem devia a nomeação para Juiz de Fora de Arganil (1801), e cujo objeto se inspirou nos reportórios das Ordenações e nas Remissões das leis novíssimas, sem esquecer o gosto da época de “reduzir a dicionários ou alfabetos” as artes e as ciências, como confessa na prefação.

O índice cronológico ou remissivo da legislação portuguesa posterior à publicação do Código Filipino (Lisboa, 1805), de João Pedro Ribeiro, facilitou-lhe o trabalho preliminar de inventariação cronológica, mas sem a incorporação, em 1806, na Biblioteca da Universidade de Coimbra da monumental livraria de monsenhor Hasse, particularmente valiosa pela “coleção mais completa e rica de Direito Pátrio, pois continham exemplares de toda a nossa legislação que se achava impressa e cópias da que o não estava”, não teria sido possível sumariar tão copiosa legislação; quaisquer que hajam sido, porém, os auxílios e préstimos de predecessores há-de sempre valer o juízo de Coelho da Rocha ao afirmar que o Reportório é “obra de improbo trabalho e preciosíssimo valor”, que em seu tempo orientou advogados e juízes e hoje ainda se não dispensa na estante dos manuais de que a erudição se socorre.

Tal é, em sumário conspecto, o significado da atividade literária de Fernandes Tomás como jurisconsulto. A intenção militante é clara, o vinco epocal, profundo; no entanto, sempre lhe conferirão duração intemporal a vitalidade imorredoira do ideal de Justiça, que o alentou, e a luz que as suas páginas derramam sobre a compreensão das intervenções do Estadista e do Parlamentar na instauração do Estado liberal.


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