Manuel Fernandes Tomás, jurisconsulto

Este trânsito do século XVIII para o século XIX foi, porventura, a época em que a nossa gente apreciou mais austeramente a clareza das ideias e o fulgor da exatidão, nua e escorreita. Enterrada a Escolástica, sem respeito nem saudade, renovado o ensino superior com os arrojos do Iluminismo, que entre nós foi essencialmente educação pela razão, tornada a todos aceita a conceção mecânica do Universo, e apreciadas, como cumpria à nova mundividência, a Matemática e a Física, chegou a vez da História se desenxovalhar da baba da lisonja e se habituar também à limpeza sadia da exatidão. Datam de então, depois da indecisa luz dilucular da Academia Real da História, a constituição das disciplinas auxiliares da História, o apuramento crítico das fontes, o roteiro erudito dos arquivos e das livrarias, a publicação de colecções documentais e de memórias monográficas —, numa palavra, a investigação minuciosa e exata, sem a qual não há atividade crítica ou cientificamente construtiva.

Vivendo política e socialmente uma quadra outonal, os homens deste tempo, embora quase todos pertencessem pelo sentimento e em parte pelas ideias mais ao século XVIII que ao século XIX, pediram à investigação histórica a luz de conhecimentos tão exatos como os que refulgem nas ciências matemáticas e físicas, então paradigmas do saber.

A Academia das Ciências e a Universidade de Coimbra foram as oficinas desta atividade que, dentre outras manifestações, se arrojaram a missão de esclarecer criticamente alguns sectores histórico--jurídicos e de devassar certas gavetas dos arquivos documentais de algumas corporações, que não raro usufruíam ilegitimamente direitos e foros, fundados em títulos de pretensa autenticidade e de duvidosa exatidão.

A admirável campanha desentranhou-se em copiosa literatura intelectualmente aparentada pelo mesmo anelo de restituição e de esclarecimento, e dessa literatura Fernandes Tomás foi a um tempo discípulo e colaborador.

Como discípulo, aprendeu, muito em especial nas Observações historicas e criticas para servirem de memorias aos systemas da Diplomatica Portuguesa, Parte I (e única), Lisboa, 1798), de João Pedro Ribeiro (1758 † 1839), lente de Diplomática na Universidade, que “a História crítica dos diversos exames que se têm feito sobre alguns dos cartórios públicos e particulares do reino, abunda em provas de incerteza, da dúvida, da obscuridade e até da infidelidade de muitos e mui ateníveis documentos, que ali se acham; em tal forma que, quando não se deva estabelecer em regra a falta de autenticidade de muitos manuscritos, que hoje aparecem despidos das solenidades que por Direito se exigem, deve-se desconfiar, pelo menos, da sua veracidade, enquanto por meio das indagações dos peritos sobre cada um deles não se conseguir uma declaração, que sirva como de pedra de toque de sua pureza” -,lição que, como adiante veremos, lhe deu ensejo, dentre outras implicações, à revisão prudente da teoria jurídica da prova documental.

Como colaborador, porém, o merecimento próprio ultrapassa o vinco discente. Pela mútua compenetração do senso jurídico e do sentido histórico, as Observações e o Reportório exprimem adequadamente, com efeito, o espírito da época: se aquelas defendem a justa aplicação das Leis nos precisos termos do respetivo âmbito, insofismavelmente fixado, com implacável supressão do que não existindo por Lei é jurídica e socialmente contra Lei, este tem a ambição de orientar e de estabelecer ordem na barafunda da legislação decorrente das Ordenações Filipinas até 1814, destinada em grande parte a regular situações concretas.

Com terem, assim, um denominador comum, cada uma destas obras possui, no entanto, seu vinco peculiar e objetivo próprio, que cumpre apurar. Comecemos pelas Observações, e desde logo pelos acontecimentos que deram ensejo à sua publicação.

II— Vila Nova de Monsarros é uma antiga e humilde povoação do atual concelho de Anadia e outrora na área da Comarca de Coimbra, que a exemplar tenacidade do pároco Manuel Dias de Sousa na luta pelo Direito tornou memorável na história das demandas judiciárias, no processo moral da dissolução do antigo regime e na própria literatura jurídica. Na nomenclatura administrativa anterior à reforma liberal, Vila Nova de Monsarros era um couto, isto é, terra privilegiada ou isenta, a cujos moradores D. Manuel prescreveu em foral de 1514 as prestações ou impostos que deviam pagar ao Cabido de Coimbra como donatário da Coroa. Como em tantas outras terras, com o decorrer do tempo, perdida a memória do foral, as prestações cresceram e variaram sem título legal justificativo; e para além destas alterações já de si iníquas, os rendeiros, que arrematavam por junto as prestações para depois as cobrarem singularmente, procediam amiúde extorcionariamente, amargurando as famílias com demasias e vexames e revoltando as consciências bondosas e justas. A revolta irrompia aqui e além, espontânea e dispersa, sem outra finalidade que não fosse a graça da misericórdia.

A hora de Mousinho da Silveira, embora se aproximasse com a necessidade irresistível dos fenómenos naturais, sob o tumulto de uma tempestade revolucionária, estava ainda distante (decreto de 13 de Agosto de 1832), porque nem a razão era propícia nem os espíritos estavam maduros para se levar a cabo a supressão radical do obsoleto, antieconómico, iníquo e confuso regime administrativo e fiscal.

Se eram numerosas as terras em que os povos gemiam e se lamentavam, solicitando a esmola da comiseração e a da própria Justiça, no entanto só em Vila Nova de Monsarros se ergueu uma vontade decidida a lutar pelo Direito: foi a do seu prior Manuel Dias de Sousa. Ele o conta nesta página da Reprezentação do Estado da Paroquia de Vila Nova de Monsarros pelo seu Paroco ao Illustrissimo e Excelentíssimo Sr. Bispo Conde, Reformador Reitor da Universidade de Coimbra, em observancia da sua Pastoral de 24 de Outubro de 1795, a qual tendo estado em desuzo, foi mandada outra vez observar por huma Ordem circular do mesmo Sr. no mez de Março de 1818:

“No anno de 1794 em que eu vim para esta Paroquia, ela se compunha de 195 fogos; e ainda achei dois no sítio do Carregal, que hoje se acha deserto. Logo observei que a povoação hia em decadência; e no anno de 1797 já não tinha senão 188 fogos, tendo diminuido sete em tres annos. No anno de 1800 observei serem esbulhadas cinco familias de todos os bens que possuião; e sete outras sofreram huma grande diminuição nos que lhes competião. Averiguei que procedia esta calamidade de execuções que lhes fazião os Rendeiros do Cabido, por dividas pela maior parte forjadas a arbitrio dos mesmos Rendeiros; e os povos sucumbião por não saberem, ou não poderem ir defender-se a essa cidade [Coimbra] no Juizo da Conservatoria.

De quatro em quatro annos sempre havia destas execuções, que obrigavão muitos á venda das suas propriedades, para se eximirem da vexação dos Rendeiros, as quais sendo repetidas chegarão a reduzir muitos proprietarios ao estado de jornaleiros, e outros ao de mendigos.

“No anno de 1800 augmentou-se a tributação dos meus freguezes de forma que os estimulou a procurar a sua defeza. Os rendeiros entrarão a pedir ração de todas as novidades, contra o uzo até ali praticado, e contra o Foral, que só lha concede de pão, vinho e linho.

As execuções que se costumavão em cada quadriénio pertenderão repetir-se todos os annos, involvendo nellas as contribuições não costumadas com as legitimas e que estavão em uzo. Isto foi o que provocou a ler o Foral para discernir o que era devido do que se pertendia uzurpar.


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