Com este fim publicou em 1813, no decurso da ação que se pleiteava na Relação do Porto, o Discurso juridico, historico e critico sobre os direitos dominicaes, e provas delles fneste reino em favor da Coroa, seus donatarios, e outros mais senhorios particulares: juntamente convicção fundamental,das Theses de hum Papel sedicioso, que grassa manuscripto com este Titulo = Advertencias de hum curioso em favor dos Lavradores que forem vexados, e opprimidos com Titulos falsos, e Tombos nullos, ou com pertenções alem dos Titulos legitimos.
A sentença da Relação do Porto, de 26 de Março de 1814, condenando os advogados do Cabido de Coimbra, lavrada pelo desembargador José de Melo Freire, sobrinho do grande jurisconsulto e patriota decidido, que na Junta Provisional do Porto, em 1808, representou, com o seu colega Luís de Sequeira da Gama Ayala, a Magistratura, destruiu, porém, talvez de forma inesperada, a teia de tais argumentos e esperanças. Juridicamente, é uma peça notável pela fundamentação e dedução lógica, que alcançou “grandes aplausos e elogios por todos aqueles que têm luzes e se interessam no bem da Humanidade, porque ela serve muito para conter os abusos dos Forais, enquanto se não obtém a desejada reforma que a clemência e cuidados paternais do nosso Augusto Soberano promete na sua carta régia de 7 de Março de 1810”; no entanto, o veredicto contra a dignidade profissional do advogado de Lobão, já então conhecido no País pela erudição e que começava a sê-lo também pela operosidade, deveria ter concorrido poderosamente para que a sentença adquirisse a expansão vibrátil das paixões.
Dada logo à estampa, nos prelos da Impressão Régia, no mesmo ano de 1814, a sua impressão suscitou uma série de escritos na qual se integram também as Observações de Fernandes Tomás ao Discurso... sobre os direitos dominicais, de Almeida e Sousa.
Representam estes livros dois momentos do processo histórico-jurídico da dissolução do antigo regime, assentando um nos anacronismos e iniquidades de uma tradição que agonizava, e ensaiando o outro os primeiros voos em defesa da uniformidade do imposto e da igualdade perante a Lei. Conhecidas as circunstâncias que lhes deram ensejo, cumpre que nos detenhamos um pouco nas ideias que expõem e na mentalidade e atitude que revelam.
III — No Discurso de Lobão, como no comum das obras que ao depois escreveria, a erudição corre abundante e as distinções sucedem-se com a volúpia de um ergotista. Na essência, contudo, continua a atitude mental dos praxistas ou práticos, como há dois séculos se dizia, tanto mais que este seu livro é o desenvolvimento, em profundidade e em extensão, do arrazoado com que contestara a ação proposta na Relação do Porto e lhe valera o vexame da penalidade, que de pleno atingira o seu brio de advogado.
As duzentas páginas por que ele se alonga é possível que tenham sido redigidas com a rapidez da sua primeira obra, o Tratado Prático dos Morgados, “traçada em trinta e cinco dias nos intervalos dos exercícios contínuos do Foro” como declara no prefácio. Se assim foi, acreditam incontestavelmente a prodigiosa capacidade de trabalho deste homem e a perfeita ordenação dos seus apontamentos e notas, mas isto não significa que afiancem os méritos do talento. São coisas diferentes e inconfundíveis, além de que a pressa jamais foi boa conselheira dos trabalhos que se nutrem da reflexão; é o que o espírito e a orientação do Discurso tornam claro, e agora acentuaremos, pois adiante voltaremos a ter contato com o autor a propósito da crítica de Fernandes Tomás.
Perante o encargo da defesa do Cabido de Coimbra, Lobão não hesitou em confundir a reivindicação jurídica do povo de Vila Nova de Monsarros com o espírito revolucionário, identificando, portanto, os interesses, legítimos e ilegítimos, desta Corporação com a conservação da ordem social. Esta atitude, não sabemos se filha da convicção sincera se da rabulice arteira, levou-o a pôr de parte os escrúpulos da razão equânime e a raciocinar sob a influição de dois pressupostos, aliás não declarados: a posse imemorial pode conferir situações jurídicas contra o Foral, e nem sempre existe igualdade entre os que adquirem um direito e os que se sujeitam a uma obrigação.
Partindo destes princípios condutores, o Discurso tinha de ser, como é, um memorial de iniquidades e um atoleiro de ideias retrógradas.
Com efeito, se os povos sofriam extorsões e vexames na prestação cios direitos dominicais, a ponto de, como vimos, a própria Regência admitir a possibilidade da sua extinção, se os eruditos, como o grande João Pedro Ribeiro, vinham provar que abundavam nos cartórios e arquivos documentos falsos e viciados, com os quais se cobravam ilegitimamente pretensos direitos, Lobão não hesitava em estabelecer à maneira de proposição intuitiva que “os modos e meios lícitos com que nos princípios da Monarquia os Grandes do Reino, alguns particulares, as Ordens, as Catedrais, Colegiadas e Mosteiros se fizeram opulentíssimos, e como neste Reino os Senhorios das terras nunca costumaram nelas habitar, cessa (falando em geral, e da parte mais principal) neles a presunção da concussão, terror e extorsão a seus Vassalos” (§ 33).
Com a tradição jurídica de sempre, reconhecia que os documentos careciam de ser verídicos para firmarem direitos, mas no fundo pensava que a crítica diplomática procedia mal avisadamente quando se intrometia em averiguações que abalassem a estabilidade do existente, dando azo a que houvesse gente com o “turbulento espírito” do pároco de Vila Nova de Monsarros, autor do Papel sedicioso, isto é, dos Apontamentos para defesa dos lavradores deste couto, que se atrevesse em dizer aos seus paroquianos “serem de fé duvidosa, ou de nenhuma fé, todos os documentos que se conservam nos arquivos das Catedrais e Mosteiros; e com umas proposições falsas querendo tratá-los todos como tais, estimulando e provocando os rústicos às sublevações que se têm visto por efeito do tal Papel e dos seus conselhos, para sacudirem o jugo de foros os mais antigos e os mais justos” (§ 146).
Por isso, para desterrar dos tribunais o parecer dos peritos diplomatistas e antiquários, subministrava (§§ 134 e segs.) algumas regras de crítica documental, com a reservada intenção de proporcionar aos juízes elementos que os habilitassem a decidir na matéria.
Sofisticando e forjando opiniões adrede, como a das escrituras, sendo antigas, fazerem meia-prova independentemente de reconhemento e comprovação (§ 130), Lobão chegou a ponto de sustentar a desigualdade da situação jurídica do donatário e do seu vassalo no que respeita à prestação de prova documental em demandas sobre direitos dominicais.
A seu ver, cumpria distinguir o caso em que se controvertessem direitos dominicais entre o donatário e o procurador da Coroa, do daquele em que se controvertessem entre o donatário e os foreiros, pois no primeiro caso o procurador da Coroa teria o direito de exigir a apresentação do título da doação régia pela qual o donatário possuía os bens e direitos reais que usufruía (§§ 74 e segs.), mas no segundo, “quando o que se diz donatário da Coroa está em posse dos direitos reais de algum território e como tal trata controvérsia com qualquer pessoa particular que não seja o régio procurador, não tem obrigação de exibir ao seu adversário o título da sua posse” (§ 84).