Manuel Fernandes Tomás, jurisconsulto

Sustentava ainda que o réu demandado pelo donatário pudesse arguir-lhe a falta de confirmação da sua doação régia, “por ser esta arguição privativa do régio procurador” (§ 85), ao que Fernandes Tomás objetava que urna doação não confirmada é um documento nulo. Demais, acrescentava (§ 86), se existe “a possibilidade de terem adquirido as Catedrais, Igrejas e Mosteiros largos tratos de terra nos princípios da Monarquia sem doação real”, se “nada há que obste a que os aforassem, como efetivamente aforavam por quotas de frutos, ou divididos em casais com foros sabidos, e se estes não são senhores jurisdicionais dessas terras, que necessidade têm de mostrar doações e confirmações delas aos foreiros, quanto sem elas era possível que licitamente adquirissem esses territórios, à exceção dos que se dizem senhores de Honras?”

Mais não é preciso para que se apreenda a atitude iníqua, inconsistente e retrógrada de Lobão. Refutá-la, aniquilando os argumentos com que se coonestava, não era porventura dever para quem possuísse o sentimento do Direito, o amor da exatidão, e o anelo da reforma social?

O Homem que assumiu a desafronta da consciência jurídica contra as rabulices da chicana foi Fernandes Tomás. Atentemos um momento na índole da sua vigorosa personalidade.

IV — Entre Fernandes Tomás e Lobão não há paralelo: são filhos do mesmo século, mas guiaram-se por princípios diversos, seguiram caminhos divergentes no mundo das ideias e não os aqueceu o calor dos mesmos sentimentos nem o entusiasmo das mesmas esperanças.

Lobão, mais jurisperito que jurisconsulto, foi incansável em devassar o arsenal das velharias jurídicas, e, por isso, de espírito espesso, pesadão e rabulista como todos os que desatendem à realidade viva para sofisticarem com a pólvora seca das opiniões e dos desacertos.

Nos milhares de páginas que escreveu, graníticas, toscas, fastidiosas, não há um estremecimento de piedade nem o sorriso de uma ironia; são quase sempre iguais na estreiteza do método, na monotonia da disposição construtiva, no subterfúgio ilusório da acumulação de opiniões, como se a abundância de nomes coincidentes no erro tivesse o condão de gerar a verdade. Claro que escreveu páginas lúcidas, penetrantes, substanciosas, e nem de outra forma o seu nome teria sobrevivido; estão, porém, tão mescladas de escórias que só o esforço da boa vontade as descobre e regista.

Foi o advogado dos poderosos e dos privilégios e escreveu como que advogando, ou mais propriamente, chicanando. Os seus livros foram e serão úteis pela informação erudita e compendiosa; mas da sua índole e compleição mental sentenciou Herculano, sem apelo nem remissão, que fora “um letrado de curta inteligência e nenhuma filosofia”…

“Tinham-no adivinhado por instinto os benardos e os crúzios. Era o seu advogado. Este homem escreveu nas primeiras décadas deste século, em ódio da gramática e da língua, uma pilha de volumes refertos de erudições gravíssimas, onde o pró e o contra das opiniões dos jurisconsultos se acham acumulados por tal arte, que a leitura dessas dezenas de in-quartos é o meio mais seguro de se não saber qual é o verdadeiro direito na maior parte das matérias jurídicas. São os livros de Lobão tesouro precioso, mina inesgotável de alegações eternas e contraditórias, para advogados medíocres. Como o mestre de meninos de Atenas que emendava Homero, o causídico beirão engenhou três grossos volumes a endireitar as torturas do ilustre Melo Freire. Com que delícias não castiga ele às vezes as ignorâncias desse pobre homem de génio!”.

Fernandes Tomás é outro homem e outra mentalidade. Pelas ideias e pelos sentimentos foi entre nós o primeiro “cidadão”, no denso sentido novecentista da palavra, isto é, uma consciência que, inflamada pelos anelos da igualdade perante a Lei e da garantia dos direitos individuais e das franquias públicas contra o arbítrio e demasias do Poder, não traiu os direitos inalienáveis da Nação nem descansou na luta contra os privilégios que a consciência epocal repelia.

Como jurisconsulto, não rompeu definitivamente com o prestígio das autoridades, mas o seu raciocínio ambicionou possuir a consistência que dá o apoio direto dos textos legais, de que foi profundo conhecedor, e a coerência lógica inerente ao encadeamento correto dos juízos. Na sua linguagem, como na sua oratória, de constituinte no Soberano Congresso, não há inovações vocabulares nem arrojos de construção, sucedendo-se os períodos com a rigidez de uma sentença; não obstante, sob eles lateja uma inteligência cônscia de si própria e pulsa uma alma que se indigna com a injustiça e se entusiasma com a defesa do Direito.

As Observações sobre o Discurso que escreveu Manoel de Almeida e Sousa em favor dos direitos dominicaes da Coroa, donatarios, e particulares, saídas a público em 1814, com licença da Mesa do Desembargo do Paço, em Coimbra, na Real Imprensa da Universidade, foram a sua primeira obra impressa. Severamente pensada e solidamente fundamentada, é legítimo supor que a redação tivesse sido meticulosa e demorada, dado que a pressa nunca foi propícia a trabalhos desta natureza. Com os dados atuais é impossível computar com segurança o tempo durante o qual trabalhou no manuscrito, embora não seja inverosímil a hipótese de ter sido relativamente curto por lhe ser familiar o assunto. Os deveres do cargo de Provedor da Comarca de Coimbra obrigavam-no a estar ao corrente da situação de facto e de direito dos bens da Fazenda Pública, real ou concelhia, cumprindo-lhe, designadamente, fazer restituir os maninhos e baldios aos concelhos, quando se achassem possuídos por donatários, igrejas e mosteiros, sem título, não aproveitando neste caso a posse imemorial (Prov. de 26. Nov. 1766), entrar em todas as terras da comarca, por mais privilegiadas que fossem, como contadores da real fazenda (Inst. 4. Set. 1773 e C. L. 19. Julho. 1790), e não consentir “que donatário algum da Real Coroa se conserve em posse e uso de doações de bens, de jurisdições, de regalias e de privilégios, sem que tenham cartas ou confirmações das referidas doações, registadas nas mesmas Correições ou Provedorias” (Decreto de 17. Nov. 1801).

O cabal conhecimento destas obrigações levou-o, sem dúvida, a refletir sobre alguns dos temas que Lobão haveria de versar no Discursoe, porventura, a acompanhar com interesse profissional e jurídico o desenrolar dos pleitos de Vila Nova de Monsarros no Juízo da Correição de Coimbra e na própria Relação do Porto, da qual já era desembargador honorário.

O facto, porém, que decisivamente inculca que a redação e publicação das Observações se levaram a cabo no decurso de um ano, pouco mais ou menos, desde a divulgação do Discurso, em 1813, à publicação da sentença da Relação do Porto, em 24 de Março de 1814, é o testemunho do pároco de Vila Nova de Monsarros, que em 25 de Novembro de 1814 participava a certo “Amigo Doutor” que “o Lobão, além do desgosto que recebeu com esta sentença, também ao mesmo tempo teve o de ver publicamente refutados os paradoxos, que tem publicado em seus escritos. O Desembargador Manuel Fernandes Tomás, e Provedor em Coimbra, é que tomou à sua conta esta empresa e me poupou o trabalho de responder ao que diz o Lobão sobre os Apontamentos que arranjei para fundamentar a defesa deste meu povo, quando o vi em aflição pela vexação do Cabido: deles se me têm tirado muitas cópias. O Lobão o produziu debaixo de outro título, e lhe chama papel sedicioso. O Provedor fustigou muito bem o Lobão, e com mais moderação do que eu faria se lhe respondesse, porque mais de uma vez me tem provocado.


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