Manuel Fernandes Tomás, jurisconsulto

Consta-me que o mesmo Provedor vai continuando em refutar outros escritos do mesmo Lobão; e também está concluindo um Reportório das nossas Leis extravagantes, e do seu trabalho, assim numa como noutra coisa, não pode deixar de resultar um grande bem à Humanidade, por facilitar a boa administração da Justiça. Fica de aviso de procurar tudo o que produzir este sábio Escritor, e quando por aí não cheguem os seus escritos, avisa-me para tos fazer ir pelo Porto”.

Destas curiosas informações, cuja exatidão não há motivos para pôr de remissa, importa ainda notar que Fernandes Tomás deveria ter trabalhado simultaneamente nas Observações e no Reportório, de preparação morosa e fatigante, e que viu a luz da publicidade em 1815.

V — Quaisquer que tenham sido os preliminares do aparecimento das Observações é tempo de nos aproximarmos das páginas deste livro, reveladoras da dignidade de um jurisconsulto que empregou desinteressadamente o seu saber em defesa da Justiça e do Direito, porventura com risco da tranquilidade. Quando o escreveu, a consciência de Fernandes Tomás já não se conformava com a ordem existente mas estava ainda distante do rasgão revolucionário. Era apenas um reformista que desejava ver subordinados, sob o império da Lei, os interesses particulares ao interesse geral.

A esta hora, depois da Revolução Francesa e, sobretudo, do decreto das Cortes de Cádiz de 6 de Agosto de 1811, que extinguiu privilégios, como os direitos dominicais, que tolhiam a unidade do poder público e a expansão da atividade individual, o regime foraleiro tornara-se anacrónico e até revoltante; no entanto, não se pronunciou abertamente contra ele, pensando com Pascoal de Melo Freire nas Institutiones Juris I, T. VII, § 15 que as ilegalidades, injustiças e vexames que os povos sofriam com a prestação dos direitos dominicais poderiam ser corrigidas pela forma. “Vem aqui muito a propósito declarar, diz na Introdução, que não é nossa tenção escrever contra os direitos da Coroa, nem atacar os de seus Donatários ou mesmo aqueles dos Senhorios particulares.

Quando o príncipe regente Nosso Senhor tem publicado competentemente na sua carta régia escrita do Rio de Janeiro a 7 de Março de 1810, que o atual sistema dos oitavos, quartos e terços oprimem demasiadamente a agricultura; quando ele sente que os Forais são em algumas partes do Reino intoleravelmente pesados e concebe até o projeto de os extinguir, ou minorar pelo menos, julgamos que em atacar todas as ideias, todas as opiniões, e as doutrinas todas que achamos em contraposição às Vistas Bemfazejas e aos Cuidados Paternais do Nosso Augusto Soberano, não fazemos senão ir conformemente ao plano de melhoramento e de reforma que ele tem mandado executar para felicidade da Nação”.

Sendo, assim, um conformista, isto não significa que a sua cons-ciência tolerasse a existência de “muitos senhorios, que percebem direitos dominicais excessivamente medrados em seus úteis e regalias”. Mais tarde, no Soberano Congresso, o estadista, hostilizando a extinção dos forais, defenderá, no entanto, a necessidade de uma reforma profunda, em atenção sobretudo ao estado da agricultura e para que se desimpedissem alguns estorvos da livre atividade económica; mas a esta hora é apenas o jurisconsulto que repele “uma obra em que se ensinam os meios de sustentar posses injustas como atos legais” e cuja doutrina só vem “dar calor a pretensões excessivas e animar os poderosos que se abalancem mais afoitamente a empresas que, intentadas, perseguem e inquietam centenares de famílias e, vencidas, rematarão a desgraça de povoações inteiras”.

A sua consciência jurídica revoltara-se contra o desaforo de um causídico que sustentava serem possíveis “contratos opostos à igualdade que deve observar-se entre os que adquirem um direito e os que se sujeitam a uma obrigação” e que “sobre tantas posses, tantas prescrições a favor dos senhorios contra os desgraçados foreiros, quer ainda... fazer-lhes este grande benefício de os privar do favor, que a Lei do Reino (Ord., Liv. III, tít. 75) concede a qualquer que é condenado em sentença, dada contra direito expresso, de poder em todo o tempo reclamar dela!!!”.

Como o título inculca, as Observações foram escritas com o propósito de contestar algumas opiniões de Lobão no Discurso, e as suas páginas, sendo obra de crítica e por vezes de controvérsia, não decaíram jamais na “objurgatória” e muito menos na “diatribe”, como já se escreveu; não apresentam um período nervoso ou agastado, e é o próprio autor do Discurso, como adiante veremos, quem comprova a elevação do seu crítico.

A matéria pode agrupar-se em duas partes: a primeira, de certo modo geral, ocupa-se dos forais, das doações régias e da posse imemorial (Caps. I-VII); a segunda, consagrada à análise da impugnação das teses do Papel sedicioso, tem a feição de contradita analítica, embora contenha umas reflexões gerais sobre os tombos das corporações e de particulares (Caps. IX-XI).

Com a boa tradição, Fernandes Tomás via nos forais verdadeiros códigos de direitos, de obrigações e de normas, cuja declaração pertencia ao soberano, jure proprio, como expressão do poder legislativo, tão privativamente que quando outrem os estabelecia tinha de ser na qualidade de donatário da Coroa e por mercê do soberano; consequentemente, o juízo de Lobão de que Melo Freire errara ao afirmar que só o soberano tem o poder de impor censos e tributos por foral, é inconsistente, porquanto os forais “não foram dados pelos particulares como particulares, e se o foram não podem deixar de se reputar usurpações” (§ 4).

Estabelecida esta doutrina basilar, que se apoiava no Alvará de 14 de Junho de 1776, ocupa-se a seguir (caps. MV) do valor jurídico do foral considerado como lei, do alcance da reforma de D. Manuel em relação aos forais até então vigentes, dos problemas de saber se a posse imemorial tinha lugar contra os forais, se os maninhos que foram dados para pastos, criações e logramentos podiam ser ocupados em domínio particular e adquiridos por posse imemorial, e, finalmente, se era correta a opinião de Melo Freire, que, considerando a mudança da espécie do pagamento nos emprazamentos como novo ónus, tributo ou pensão, e sendo proibido pedir novos tributos ou direitos contra a determinação do foral, “se deve igualmente julgar proibido exigir do cultivador a quota dos frutos das árvores quando ele muda a cultura da terra em plantações de arvoredo, e que neste caso se deve recorrer ao Soberano para declarar o Direito, que se há-de seguir” (§ 57).

Em todos estes assuntos Lobão tomara o partido de justificar juridicamente as situações de facto favoráveis aos senhorios. Era o partido da injustiça, da prepotência e da rabulice trapaceira; por isso, a crítica de Fernandes Tomás, para além do valor jurídico da contestação, reveladora da penetração e do saber de quem conhecia a tradição dos romanistas, a história do direito pátrio e a jurisprudência coetânea, como testemunha, por exemplo, a demonstração de que a posse imemorial não tem lugar contra as disposições foraleiras (§§ 55 e 56), possui a nobreza moral de representar a defesa do fraco contra a opressão, da justiça contra a espoliação, do Direito contra o arbítrio.

Não foi só pelos lapsos e lacunas dos forais que Lobão quis fazer entrar o seu cavalo de Troia; tentou-o também na teoria das doações régias e na da posse imemorial.


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