Manuel Fernandes Tomás, jurisconsulto

Para Fernandes Tomás, as doações régias, como mercês que eram, deviam passar pela chancelaria e ser apresentadas pelos donatários, seculares e eclesiásticos, quando houvesse confirmações.

É, à luz deste princípio que desfaz a sofistaria do Discurso e aponta as iniquidades que ela encobria. Assim, se Lobão sustentava que as corporações eclesiásticas apenas estavam sujeitas às confirmações gerais e não de rei a rei, Fernandes Tomás vem mostrar que se os institutos perpétuos não podiam possuir, pela Ordenação (I, t. 18), bens de mão morta sem licença régia, era necessário logicamente que dessem a conhecer nas confirmações, gerais ou de rei a rei, a legalidade das suas adquisições, isto é, provassem que não haviam exorbitado da mercê que se lhes fizera.

Do mesmo modo, se o advogado das iniquidades defendia paradoxalmente que o donatário da Coroa que estivesse na posse de direitos reais somente era obrigado a exibir o título da posse no caso de controvérsia com a Coroa —, “caso único em que o donatário é obrigado a exibir a sua doação e confirmação (nos casos em que esta é precisa) e não quando a controvérsia é entre o vassalo e o foreiro (Discurso, §§ 84 e 88) Fernandes Tomás provava, com a lei geral, que o donatário só está isento de exibir o seu título quando for demandado por particular.

As páginas consagradas à prova das doações são das mais brilhantes pela clareza e precisão, podendo dizer-se, em resumo, que Fernandes Tomás considerou as doações ou como factos que se não supõem e, por consequência, carecem necessariamente de prova, ou como escrituras, que servem para mostrar a existência desses factos. No primeiro caso, em demanda com particular, o donatário, sendo autor, é obrigado a apresentar o respetivo título para fundamento do pedido; no segundo, não tendo a doação confirmação, o réu pode alegar esta falta. Os mais elementares interesses da ordem social conjugam-se, assim, com os do Direito e da equidade para repelirem a afrontosa opinião que privava o réu demandado pelo donatário de lhe objetar a falta de confirmação régia da doação, porque como escreve Fernandes Tomás, se “o Soberano diz — a doação não confirmada não vale o julgador decidindo, responde —, a doação não confirmada vale —, que males se não seguiriam de se admitir um sistema tão destrutivo da ordem pública? (§ 77).

Finalmente, Fernandes Tomás refuta “sem réplica”, como ele próprio escreve, a argumentação tendente a insinuar que a posse imemorial e a prescrição se verificassem nos bens e direitos da Coroa (§§ 80-87), tapando assim mais uma brecha por onde Lobão tentara introduzir o ardil, com o respetivo arsenal de iniquidades e de extorsões.

A segunda parte das Observações foi pensada especialmente como impugnação das teses contra o Papel sedicioso, ou seja, como já sabe-mos, os Apontamentos para defesa dos Lavradores do couto de Vila Nova de Monsarros, da autoria do pároco Manuel Dias de Sousa.

Precede-a, não obstante, a exposição das opiniões de Fernandes Tomás acerca da teoria da prova “que é a ação mais importante do juízo” e “a parte mais essencial do processo, que todo ele roda neste eixo principal da administração e distribuição da justiça civil e criminal. As dúvidas que ocorrem na exposição do direito, a diferença das espécies que se tratam, daquelas que se fingem na Legislação, e a diversidade de interpretação, que se lhes conforme o diferente modo de pensar de cada um, sendo embaraços terríveis com que se tem a lutar diariamente na aplicação das Leis ao facto, perdem quase toda a sua força e tornam-se de não grande momento, quando se comparam com as irregularidades, colisões e incerteza da prova, na qual nem há, nem talvez seja possível haver, uma guia segura, firme e permanente” (§ 89).

Na prova testemunhal existem, em regra, «mais meios, ou ao menos, mais fáceis, para chegar ao descobrimento da verdade”; a documental, pelo contrário, é mais dificultosa, porque “uma escritura pode encobrir a verdade não só uma vez, sendo fabricada para isso de propósito, mas ainda sendo verdadeira, ela autoriza a mentira tantas vezes quantas forem as interpretações erradas que dela se fizerem, e que é sempre possível fazer quando suas palavras forem obscuras” (§ 91).

Daqui resulta a complexidade intrínseca da prova documental, que mais se complica quando se trata de escrituras ou documentos antigos, cuja interpretação reclama “por guia e norte” as regras da Diplomática, cabalmente aplicadas pelos que se entregam a esta ordem especial de conhecimentos. A prova de domínios, direitos, senhorios e doações fundados em documentos antigos é, pois, melindrosa, pelo que discordava de Lobão “na facilidade de dar crédito, ou mesmo peso, a essas enunciativas, a essas Crónicas, a essas inscrições, a essas armas, e finalmente a tudo o que nesta ordem não seja primeiramente bem verificado pelo exame dos homens entendidos e digam: isto é verdadeiro, isto tem autoridade. Enquanto assim requeremos os peritos, não fazemos senão conformar-nos com a disposição do Alv. de 21 de Fevereiro de 1801, § 10, em que se determina, que no caso de se contestar a autenticidade ou genuína inteligência de algum documento antigo, possam todos os Tribunais e Ministros ouvir o Lente da Cadeira de Diplomática, e sobre o seu parecer decidirão” (§ 95).

A autenticidade e veracidade dos documentos antigos constituem, assim, dois problemas diferentes, que cumpre sejam esclarecidos previamente por peritos antes de o Juiz se pronunciar sobre a questão de Direito, visto haver documentos verdadeiros que não são autênticos, e documentos aparentemente autênticos que são falsos.

Estas páginas de Fernandes Tomás revelam incontestavelmente o homem do foro zeloso da equidade da lei e singularizam-se por incorporarem na teoria da prova os resultados ético-jurídicos da erudição histórica e da crítica diplomática da sua época, que foi a grande época da investigação crítica das fontes documentais.

Não são menos valiosas as Reflexões sobre os tombos das Corporações e particulares e a Censura da doutrina de Lobão sobre este assunto (caps. IX e X), se é que o não são mais, porventura, dada a exígua bibliografia nacional, limitada a bem dizer às considerações de António Lopes Leitão, no Liber utilissimus iudicibus et advocatis ad praxim de judicio finium regundorum, Coimbra, 1690, e a inquirição e densidade de juízo com que procurou “pôr em mais alguma luz esta matéria” (§ 107).

Nos Tombos não pertencentes à Coroa só via, com razão, incerteza e arbítrio. Lavrados em geral por indivíduos que nem sempre respeitavam as boas regras processuais e se não sentiam responsáveis pela sua conduta, as medições, confrontações e demarcações eram feitas, ordinariamente, por louvados e medidores tão rústicos como ignorantes, e o reconhecimento e declaração dos censos, foros e pensões, que cada uma das propriedades medidas ou demarcadas paga ao senhorio são por via de regra irregulares, dado que a competição se dá entre o senhorio e o foreiro “e ninguém deverá esperar que triunfe o mais fraco e leve a melhor o menos poderoso, se a Justiça não presidir à distribuição do prémio” (§ 114).


?>
Vamos corrigir esse problema