Pelo regimento manuelino deveriam ser lançados autenticamente nos tombos das corporações e dos concelhos “os traslados das escrituras e documentos originais, e os encargos determinados por essas escrituras e documentos originais”. A defesa desta doutrina contra a argumentação especiosa de Lobão deu ensejo a que Fernandes Tomás tomasse uma posição moderadamente regalista no sempre complicado e inflamável problema das relações do pretor com o pastor de almas:
“Em todos os casos, portanto, da competência da Igreja, em todos aqueles nos quais ela faz uso do poder que os soberanos lhe concederam e permitem e consentem que ela exercite no foro externo seus Cânones, seus regulamentos, suas providências de ordem, de economia e de administração pública, não podem deixar de merecer toda a contemplação, respeito e autoridade de Lei para as pessoas e coisas a ela sujeitas; não sendo opostas ao Direito do Reino, aos usos, costumes, franquezas e liberdades dele, e dos vassalos que o habitam; em tal forma que nem se ataque a Soberania e Independência do Poder Supremo do Monarca, nem se deixa à Igreja uma Jurisdição estéril e sem a faculdade de empregar os meios análogos e competentes, que são necessários para ela conseguir o fim dessas mesmas graças e mercês, que os Sumos Imperantes lhe fizeram... Os Prelados veneráveis, que ocupam as Cadeiras episcopais da Igreja Lusitana são sobejamente instruídos para não saberem até que ponto podem fazer observá-las; e quando seus ministros se arredem do trilho que as Leis Civis e Eclesiásticas têm marcado, os Juízes da Coroa são prontos em fazer respeitar os direitos dela na proteção do vassalo oprimido”.
Foi como jurisconsulto que Fernandes Tomás pensou e escreveu as Observações sobre o Discurso de Lobão, manifestando a esperança na “Conclusão” de que o seu “trabalho... talvez consiga... que todos se convençam de que só temos por fim a verdade; e que por isso damos às posses legais e bem fundadas aquela atenção, peso e consideração que merecem pelas circunstâncias que as acompanham; parecendo-nos em consequência menos verdadeiro o princípio que o Autor estabelece em a nota ao seu § 121, quando diz: devemos ter por certo... 4.° que nas questões ocorrentes se deve respeitar o último estado das posses sejam ou não opostas a Forais sendo elas uniformes e imemoriais. Com efeito, não nos parece bem que tanto se tenha avançado, e que se avançasse dando-se por certo, porque nem tal certeza se demonstrou, nem era possível que se demonstrasse; bastando para que assim se fique entendendo saber-se que, tratando-se de dar à execução o Plano de melhoramento e reforma dos Forais, a Mesa do Paço expediu circulares aos Corregedores das comarcas e nelas nem uma palavra se diz que seja de algum modo aplicável à posse imemorial; e posto se mande que os Ministros informem quais são os direitos que o povo paga, daqui não se segue nem que eles se devam manutenir de presente, nem que a posse os torne respeitáveis de futuro”.
A realidade não traiu a expectativa, porque o livro foi bem acolhido, a começar pelo próprio criticado. Com efeito, no ano imediato ao da publicação das Observações, em 1815, deu Lobão a público o Tratado enciclopédico, compendiário, prático, sistemático dos interditos e remédios possessários gerais e especiais conforme o Direito romano, pátrio e uso das nações — “obra de que só o intrínseco mostrará seu mérito ou demérito a quem o ler”, exara no próprio frontispício, para que a não julgassem pelas aparências, como teria acontecido, porventura, com o Discurso—, e no prefácio escreveu uns períodos cuja inteligência só se torna clara com a alusão à crítica de Fernandes Tomás. São estes: “Por todos os modos não deixarei de ser util á mocidade, para quem só escrevo: os mais Sábios corrigirão os meus erros, como já costumão, em que recebo honra, tendo por Censores não quaesquer pedantes, mas hum Homem em que a condecoração corresponde á sua jurisprudencia; e em que o Público contra alguns meus erros (não em tudo o que escrevo) receberá melhores illustrações; Bem que os Sàbios decidirão do justo ou injusto das censuras: Entre tanto digo aqui o que Marcial Lib. 6 disse das suas obras:
Sunt bona, sunt quaedam mediocrita, sunt mala plura,
Quae legis hic: aliter non fit, Avito, Liber.”
Mais tarde, em 1817 nas Notas a Mello, p. I, tít. IV, § 11 n.° 3, citação também já feita pelo Dr. Pinto Loureiro, tornou a aludir às Observações sem acrimónia nem ressentimento: “No meu Tratado dos Direitos Dominiais defendi a possibilidade de se admitir prescrição diminutiva ou por sub-rogação. Fui nesta parte combatido pelo Dr. Manuel Fernandes Tomás, provedor de Coimbra, ao tempo em que eu projetava esta obra. Assentei que não devia suspendê-la para fazer a apologia da minha obra e tive por melhor finalizar esta, mais interessante ao público, finda a qual, se Deus me der saúde e conservar o juízo, prometo o desempenho, se não é que será trabalho supérfluo, se entretanto baixar alguma lei que reforme os forais e prescreva normas fixas para o futuro”.
O apreço que o criticado assim manifestou pela pessoa e pela obra do seu crítico dá bem a medida do prestígio de Fernandes Tomás, No seu livro, porém, para além das reflexões sábias do jurisconsulto, comedido, severo, sempre preocupado da exatidão e da coerência do raciocínio, sente-se pulsar a indignação contra a iniquidade das extorsões de que os povos eram vítimas e vislumbram-se os rasgos do político que, mais tarde, no Soberano Congresso defenderia um comedido sistema de normas suscetível de lhes pôr cobro.
Razão teve, pois, Rebelo da Silva em dizer que se nota nas páginas das Observações, impressas cinco anos antes da Regeneração, “certo modo livre de exprimir e uma elevação e desassombro de opiniões, que bem meditadas, revelam já o futuro autor da revolução, o publicista que há-de lavrar o prólogo dos anais do governo representativo de Portugal”.
VI — Se nas Observações sobre o Discurso em favor dos direitos dominicais da Coroa, donatários e particulares, Fernandes Tomás não quis que sob a capa do Direito se abrigassem iniquidades e prepotências, no Reportório geral ou índice alfabético das leis extravagantes do reino de Portugal publicadas depois das Ordenações, compreendendo também algumas anteriores, que se acham em observância, saída à luz pública em 1815, na Imprensa da Universidade de Coimbra, em dois volumes, pretendeu submeter a dispersão caótica da legislação extravagante às vantagens práticas da ordem e da exação.
Era outra forma de servir a causa do Direito e de desterrar as sempre temerosas insinuações do arbítrio: bastará dizer que se calculavam em quatro mil as leis avulsas publicadas posteriormente às Ordenações Filipinas (1603) até fins do século XVIII e como é óbvio, tão copiosa legislação, que podia “ser arbitrariamente revogada não só por lei propriamente dita, mas também por cartas régias, resoluções de consultas, provisões e até avisos de ministros de Estado”, embaraçava e confundia pela dispersão, multiplicidade e variedade.
Daí o aperto de uma nova codificação que depositasse no jazigo da história a legislação que lhe fosse anterior, mas enquanto não era promulgada impunha-se, pelo menos, que alguém levasse a cabo a possível exação e simplificação das normas em vigor, com fins práticos.