Livros de D. Manuel II- Manuscritos, Incunábulos, Edições Quinhentistas, Camoniana e Estudos de Consulta Bibliográfica

Não sofrendo paralelo com qualquer destes seus antecessores, também nenhum deles se lhe compara no zelo com que se dedicou ao estudo e à publicação dos Livros Antigos Portugueses (1489-1600) da Biblioteca de Sua Majestade Fidelíssima, e ao amor que lhes devotou, já por si mesmos, pela raridade ou perfeição gráfica, já pelo poder de evocação que lhes despertavam e pelo mundo de afetos e de ideias que exprimiam, já pela sumptuosidade dos seus cimélios em monumentos de bibliátrica e de esmerada perfeição na arte de encadernar. Com que satisfação, a propósito da Vita Christi (1495), dos Autos dos Apóstolos (1505), do Boosco deleytoso (1515) e do Espelho de Cristina (1518), mandados imprimir por D. Leonor, a Rainha Velha, deixou saltar da caneta estas palavras de embevecimento: “Possuímos as quatro obras, o que forma uma coleção única no Mundo!”

Para quem viveu com plenitude a hora alta de alegrias e as depressões fundas da desilusão e da amargura, o mundo que os livros despertam, como aliás todo o fluir vivencial da existência, está sulcado de coordenadas intelectuais e afetivas, de preferências e de repulsas, de travos e de doçuras. Dia virá em que, com o socorro de documentos e de testemunhos, o historiador e o analista possam sondar com equânime objetividade o mundo interior de D. Manuel. Hoje, talvez ainda seja cedo, e além disto faltam os documentos contrastantes, que são condição essencial e apelo exigente da equanimidade da consciência e da imparcialidade do juízo.

Temos apenas diante de nós o pouco que deliberada e meditadamente deu ao prelo, nos Livros Antigos, mas esse pouco diz muito do mundo subjetivo do rei êxule, não tanto no que proclama como sobretudo, e principalmente, no que cala. Da sua pena não saiu uma palavra de ressentimento mesquinho, de ódio vingativo, de incitação pugnaz, e tudo o que neste livro escreveu, seja qual for a densidade da exatidão ou a consistência da travação lógica, teve em vista um fim supremo: Portugal.

“Quisemos mostrar, ou antes tornar conhecidos, os nossos livros”, escreveu na página inicial da introdução aos Livros Antigos. “O nosso intuito, continua, é simples; tentando dar vida a esses livros, procura-mos deixar ver a obra Portuguesa, especialmente nos séculos XV e XVI, através dos “livros de forma” que foram impressos em Portugal, acompanhando-os de alguns “de pena” e de outros escritos em linguagem, mas publicados fora do País. Os livros são amigos silenciosos e fiéis, junto dos quais se aprende a lição da vida. São o ensinamento, e em muitos casos a prova, da época que se deseja descrever; aqueles que são coevos desses tempos, podemos, certamente, considerá-los como a melhor documentação — excetuando os manuscritos originais— para essas pesquisas. A meta do nosso esforço é erguer bem alto o nome do nosso País, demonstrar os feitos dos Portugueses e, servindo a nossa Pátria, “levantar a bandeira dos triunfos dela”. É um trabalho sem pretensões, que nada vem dizer de novo, e que nada julga ensinar, mas que, esperamos, provará o nosso amor pela Pátria querida. E se alcançarmos esse fim ambicionado, teremos a consolação suprema de um dever cumprido”.

Com efeito, o patriotismo deu teor à bibliofilia de D. Manuel — repare-se na índole das secções capitais da sua livraria, notadamente a Quinhentista, a Camoniana e a dos Livros e Papéis da Restauração, esta em começo —, e foi o sentimento alentador das páginas dos Livros Antigos Portugueses, mas para além dele, os artigos que constituem o monumental volume I desta obra possuem méritos intelectuais, ou por outras palavras, são dignos de apreço pela consistência dos informes e pela coerência de alguns juízos. A esta luz, os Livros Antigos ocupam uma posição singular na nossa literatura bibliográfica, por haverem alargado a Bibliografia até quase às fronteiras da História.

Legou-nos Barbosa Machado o monumento da Biblioteca Lusitana ainda sem réplica, a qual tem de ser elevada — quando? — à altura de uma “Biografia Nacional”, mas a sua obra de Hércules padece frequentemente de inchaço retórico e de fraqueza no discernimento; construiu Inocêncio o Dicionário Bibliográfico com a ambição admirável e benemérita de inventariar a produção literária portuguesa, a par do esmero na investigação de datas, que é um dos títulos mais prestantes dos trabalhos desta natureza; divagou Xavier da Cunha nas Impressões Deslandesianas, alternando a notícia curiosa com o informe aproveitável; escreveu Aníbal Fernandes Tomás algumas Cartas Bibliográficas, expressão acabada, mas diminuta, da mentalidade e dos afãs de bibliófilo, que é somente bibliófilo; dissertou Sousa Viterbo com erudição de primeira água sobre vários temas pertinentes ao livro como espécie impressa; brindaram-nos António Joaquim Anselmo e Raul Proença com a Bibliografia das Obras Impressas em Portugal no Século XVI, de inventariação vasta, conscienciosa e segura, e deu-nos há pouco o Dr. Américo Cortês Pinto o primeiro grande painel histórico--cultural Da Famosa Arte da Imprimissão, no qual algumas das nossas primícias tipográficas foram vistas principalmente sob a perspectiva da intencionalidade artística e da projeção nacional e ultramarina.

A obra destes bibliólogos é inseparável da história do Livro em Portugal e a de alguns chega a assombrar pela perseverança no trabalho, sendo ainda atual como instrumento necessário e constante de consulta. No geral, porém, salvo o Dr. Cortês Pinto, não ultrapassaram os limites da biobibliografia, ou seja, a inventariação e descrição externa dos livros em correlação direta com a pena que os escreveu ou ditou. Cronologia, descrição gráfica e autoria, constituem quase sem exceção os seus únicos objetivos, por forma que passam à margem de outros ternas que o facto da publicação encerra ou suscita. Tê-los encarado constitui a singularidade dos Livros Antigos Portugueses, merecendo, por isso o seu Autor que além de bibliógrafo o consideremos também como bibliólogo.

Com efeito, quase todos os artigos que constituem o volume primeiro desta obra obedecem ao seguinte esquema: descrição pormenorizada do livro considerado sob o ponto de vista gráfico; observação acerca da respetiva raridade e apreço; sua relação com o autor e correlação epocal ou temática, isto é, integração na época em que saiu a público e posição que ocupa e apreço que merece na história do assunto que versa ou na História de Portugal.

Biografia do Livro - tal é a nosso ver a designação adequada da atividade bibliográfica e histórico-literária de D. Manuel, pois ao invés de Barbosa Machado e de Inocêncio, que tiveram por escopo a biografia dos escritores acompanhada da relação dos livros que escreveram, o Autor dos Livros Antigos Portugueses considerou o livro em si mesmo, ou mais exatamente aquele livro que teve diante de si como objeto próprio, que se apresentava sob certa forma, saíra da pena de um escritor, possuía atributos peculiares de apreço e ocupava certo lugar no mundo histórico-cultural ou no dos afetos e da sensibilidade dos Portugueses.

A exposição destes temas implicava, evidentemente, a posse de um método, a luz de algumas ideias gerais, e o conhecimento da literatura referente ao assunto que considerava.

Quanto ao método, ninguém excedeu D. Manuel na descrição minuciosa da disposição gráfica dos livros. As trinta e oito descrições que se encontram no volume I dos Livros Antigos são modelares, e algumas de consulta indispensável, por haverem recaído sobre exemplares únicos ou completos no conjunto das páginas e das ilustrações. Sob este aspeto, os informes, tão probos e meticulosos, de Anselmo e de Raul Proença têm por vezes de ser completados pelos de D. Manuel— e não só sob este aspeto senão ainda sob o do cotejo dos caracteres tipográficos, gravuras e elementos decorativos de alguns livros. Assim, por exemplo, o confronto do Manipulus curatorum (1523) e da Regra dos monges (1531) levou-o a notar que a oficina de German Galharde empregou material de outros impressores, “quase sem vergonha, [e] se serviu constantemente nos seus trabalhos, de gravuras, letras capitais, iniciais, tarjas e bordaduras, que Fernandes, Cremona e Campos tinham empregado nas suas composições, não tendo por consequência a finura dos outros” (Liv. Ant., 409-410), assim como o exame dos caracteres e das gravuras das edições de Valentim Fernandes lhe permitiu induções de ordem cronológica relativamente à atividade deste impressor.


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