Livros de D. Manuel II- Manuscritos, Incunábulos, Edições Quinhentistas, Camoniana e Estudos de Consulta Bibliográfica

Ninguém como D. Manuel levou tão longe as observações desta natureza, um pouco pela sua natural propensão para as investigações minuciosas e muito pela circunstância dos livros pertencerem a “tempos áureos da nobre arte impressora' de Portugal”, pelo que reproduziu numerosas páginas e gravuras com o fim de “mostrar liberalmente o engenho dos impressores que estabeleceram e desenvolveram entre nós, e com tanto primor, a arte de Gutemberg”.

Estas observações não podem ser esquecidas por quem venha a empreender o estudo sistemático da ilustração do nosso livro quinhentista, assim no valor artístico, como na origem, proveniência e significação simbólica. A este último respeito é original e sedutora a interpretação que D. Manuel deu do emblema de D. Leonor, impresso às vessas na Vita Christi, como sendo uma rede, que a viúva de D. João II teria adotado como expressão da “saudade, cheia de poesia e de encanto, que recordava à Rainha o filho único e querido que perdera” (Art. sobre os Autos dos Apóstolos, Lisboa, 1505).

A biografia do livro, porém, não podia limitar-se à apresentação material e externa. Tinha de penetrar na interioridade das páginas que o formam —, e é esta penetração que assinala o mérito pessoal de D. Manuel como bibliólogo.

Como ele próprio escreveu, tentando “dar vida aos livros que apresentamos, descrevendo os seus autores, narrando, ao de leve que seja, o seu conteúdo, explicando, na medida das nossas posses, a influência que exerceram, unindo assim o trabalho bibliográfico, tão detalhado quanto possível, ao estudo histórico, procuramos formar um conjunto que expusesse claramente a importância dos livros Portugueses de 1489 a 1600. Se, por um lado, o nosso objetivo é tornar conhecidos esses livros, a sua história, a sua tipografia, e os seus impressores, tendo colacionado todas as obras — seguindo a ordem cronológica da sua publicação   com as reproduções fac-simile das suas folhas de rosto, dos seus colophons e das suas gravuras, desejamos ao mesmo tempo mostrar, através dos livros, a Obra Portuguesa dessa época. Empreendemos uma tarefa que necessita uma paciência quase beneditina, mas que esperamos levar a cabo, apoiando o nosso estudo no maior número de autores que podemos consultar, tanto antigos como modernos”.

Este desiderato, que a morte interrompeu prematuramente, não podia ser conduzido sem o norte de algumas ideias gerais e sem socorro de leituras variadas e atualizadas. A primeira condição desenvolveu-a D. Manuel na Introdução ao vol. I dos Livros Antigos, em apreciações críticas que, com mais ou menos transparência, fluem de uma conceção do acontecer histórico, e a segunda logo ressalta a quem ler os quarenta artigos desta obra e tem expressão ordenada na lista dos, aproximadamente, trezentos Livros consultados para a respetiva composição.

Vejamos separadamente cada uma de per si.

Gerais ou particulares, estruturais ou acidentais, as apreciações históricas de D. Manuel como que procedem de uma interpretação idealista e romântica da nossa vida histórica.

“A história de Portugal, desde D. Afonso Henriques até Alcácer--Quibir — e mesmo depois — pode dividir-se em Cruzadas e Aventuras” —, escreveu, e esta partição valorativa, que se diria de um paladino da Cavalaria, que no ideal medievo tivesse vertido o conceito da existência como milícia espiritual, o qual parece ter sido o mote da “Ínclita Geração”, deu-lhe a chave da interpretação da índole e da ação histórica dos Portugueses.

Leia-se, por exemplo, esta página significativa:

“Quando se fundou a nossa nacionalidade, assim como durante os reinados dos primeiros Soberanos, o espírito da Cruzada dominava a Cristandade; naqueles tempos de crenças religiosas, combatia-se pela Fé, e a esse sentimento profundamente enraizado unia-se o espírito de Cavalaria, sempre em busca de façanhas ou de pelejas, de aventuras. As nossas Ordens Militares de Cavalaria, com os seus monges guerreiros, prestaram então relevantíssimos serviços, especialmente até à Conquista do Algarve; seguindo as três Regras, atravessamos a primeira dinastia, cujo fundador, D. Afonso Henriques, foi sem dúvida o primeiro dos grandes Aventureiros da nossa história.

“Na admirável luta pela independência, no fim do século XIV e princípio do XV, o Mestre de Avis é um outro grande Aventureiro, ao lado de quem, Cavaleiro e Santo, D. Nuno Álvares Pereira -- o braço direito do Mestre—representa a Fé de Portugal. E depois, Ceuta, início da Segunda cruzada, não foi igualmente uma Aventura, na qual, mais uma vez, a Fé se uniu ao espírito da Cavalaria?

“Ceuta foi o começo da epopeia dos “feitos d'alta ventura”. Principiamos este volume com o manuscrito em pergaminho de Mateus de Pisano, De Bello Septensi, documento importantíssimo que estava perdido há mais de um século. Foi para nós felicidade encontrar-se o velho e precioso códice, porque pudemos começar o nosso livro com a descrição de um documento contemporâneo das primeiras conquistas, escrito pelo Mestre d'El-Rei D. Afonso V no ano da morte do Infante D. Henrique, 1460. E uma relíquia das glórias Portuguesas, pois foi após a conquista de Ceuta, narrada por Pisano, que D. Henrique se estabeleceu em Sagres, donde iniciou a obra gigantesca dos Descobrimentos. O Infante foi o ferreiro que forjou a cadeia formada por elos intimamente ligados. Nas nossas notas sobre o Marco Paulo diligenciamos mostrar a maneira como esses elos se uniram, criando a admirável continuidade da epopeia. D. Henrique, um crente e um sublime ambicioso das grandezas da sua Pátria, teve, desde Ceuta até à sua morte, um único ideal: descobrir o caminho marítimo para a Índia, “dilatando a Fé, o Império”, e, ao mesmo tempo, achar o Reino cristão do Preste João; a esse ideal sacrificou tudo, e com uma coragem indomável, uma tenacidade que nada abatia — nem revezes, nem desgostos — mandava prosseguir as navegações para o Sul, em demanda da via marítima que nos levasse às terras do Oriente” (Liv. Ant., XX).

Qualquer que seja o valor que se atribua a um conceito tão compreensivamente geral e tão sentimentalmente romântico, é fora de dúvida que ele proporcionou ao Autor dos Livros Antigos Portugueses a explicação de alguns acontecimentos memoráveis e a compreensão da conformidade de alguns escritos quinhentistas com ditames e anelos da consciência nacional.

São, por isso, dignos de consideração alguns juízos de D. Manuel, notadamente sobre o Infante D. Henrique, D. João II, D. Manuel I, e D. João III, e sobre certos acontecimentos controvertidos e controvertíveis, como a motivação da conquista de Ceuta, as origens e intencionalidade dos Descobrimentos, a expulsão dos Judeus e a índole e significação da Inquisição.

Em todos eles se manifesta uma consciência que quis ser equânime, ponderando o pró e o contra; porém, o mérito da atividade literária de D. Manuel não consiste na interpretação da nossa História nem na teorização de ideias gerais. Reside fundamentalmente na meticulosidade das observações biobibliográficas, na exação dos assertos, na probidade e na lealdade com que trabalhou. O seu espírito teve a representação clara do que se propunha fazer, e convenceu-se judiciosamente de que somente ficaria bem feito o que fizesse analítica e monograficamente, em assuntos delimitados e bem discriminados. Por isso, teve a coragem mais rara do que se imagina em trabalhadores intelectuais, de não antecipar conclusões, de não avançar juízos sem prova, de não ultrapassar a fronteira do que se propunha esclarecer —, e de tudo isto deu testemunhos, que estão como que resumidos neste expressivo período do artigo que dedicou às Constituições do Arcebispo de Braga (1538), ao referir-se ao Cardeal D. Henrique: “O estudo da sua personalidade e do seu carácter terá de ser feito, pouco a pouco, em diversas obras que serão analisadas nos dois outros volumes do nosso livro” (Liv. Ant. Port., I, 570).


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