Esta página, como outras que poderiam reproduzir-se, deixam adivinhar o historiógrafo, mas no fundo tem um sentido como que preliminar ao verdadeiro desiderato de D. Manuel: a descrição e a correlação histórico-cultural dos Livros Antigos Portugueses (1489-1600) da Biblioteca de Sua Majestade Fidelíssima.
Deste grande empreendimento, somente lhe foi dado publicar as monografias, ou mais propriamente, a biografia de trinta e oito volumes impressos em Portugal desde 1489 a 1539. O bibliófilo, para quem os dias se assinalariam luminar e jubilosamente com a aquisição de novas espécies, o erudito, que se não poupou a leituras, por fastidiosas que fossem, e o investigador, cujos olhos se não cansavam com a meticulosidade das minúcias e com o deslinde das aparências falaciosas, deram-se as mãos nestas páginas, que se leem com proveito, cuja prosa tem o encanto da naturalidade, cuias ideias prendem pela lhaneza da sinceridade e cuja trama de pormenores e de correlações se furta a resumos. Para as escrever, esforçou-se por alcançar os mais raros exemplares e as melhores fontes de consulta, por forma que o habilitassem a reunir “numa exposição sem presunções o engenho dos impressores à ciência dos autores” (Liv. Ant Port., XV).
Obra de consulta, o volume I dos Livros Antigos Portugueses merece ser divulgado em edição acessível e não pode dispensá-lo quem pretenda ocupar-se do De bello Septensi, de Mateus de Pisano, ou de qualquer um dos trinta e oito escritos que o integram; se o leitor aqui e além depara com juízos doutrinais discutíveis, também encontra, e em muito maior número, observações penetrantes e informes valiosos. São eles que conferem à monumental obra de D. Manuel Il um lugar inconfundível no conjunto da nossa literatura bibliográfica, proclamam o voto de que seja continuada com a severidade de método e com a seriedade de intenções com que foi iniciada, e lhe asseguram o apreço dos eruditos e a duração inerente ao que é bem feito.
No Sermão das Exéquias de D. João IV disse o P.e António Vieira que “até hoje não houve no mundo livraria de Música, como a que S. M. tinha juntado de todo ele, e de todos os famosos mestres de todas as cidades”.
Estas palavras do grande orador acodem-me à pena para símile da coleção de livros portugueses impressos no século XVI, dentro e fora de Portugal, adquirida e reunida por D. Manuel II. Vitima livraria real no tempo, é das primeiras no esforço e no saber consciencioso com que foi organizada.
Nenhuma biblioteca pública do nosso País reúne atualmente tão grande cópia de raridades quinhentistas portuguesas e, sobretudo, tão sumptuosas e esmeradas encadernações, porque se há algumas que possuem quantitativamente maior número de livros portugueses impressos no decurso da centúria de Quinhentos, não sei de qualquer outra que qualitativamente guarde tantos e tão perfeitos exemplares de contada existência, quando não únicos.
À altura das melhores livrarias reais do passado, quis o destino que de pessoal se volvesse em nacional. E de mais que lhe ambicionemos como às livrarias reais do século XV, a devoção dos estudiosos, capazes de extraírem de tantos tesouros a lição de compreensão que eles encerram e os ensinamentos que autorizam?
Não é, porventura, exortante, por exemplo, a circunstância única do legado de D. Manuel possuir uma coleção de romances portugueses de Cavalaria, assim impressos como manuscritos, que não tem par, e cujo assunto constitui precisamente um dos temas menos conhecidos da nossa história literária de Quinhentos e uma das expressões mais cativantes do sentido da interioridade, da conceção amorosa da existência e da evasão da imaginação inerentes à nossa maneira de ser?
E porventura possível estudar a fenomenologia da sensibilidade religiosa da época vicentina, a literatura de preceptiva política e pedagógica na primeira metade do século XVI, bem como os manuais e compêndios do ensino do Latim nos primeiros decénios do mesmo século, sem manusear os raros e preciosos livros de D. Manuel?
Não se pode dizer isto mesmo de vários outros assuntos, desde o da história da tipografia ao da ilustração do livro, desde a história da nossa linguagem, nos seus primeiros monumentos impressos, até aos temas históricos e literários?
Onde a acessibilidade, tão agradável, e a satisfação mais franca de folhear tantas raridades, desde os mais expressivos testemunhos literários da sensibilidade moral da rainha D. Leonor, sem a qual Gil Vicente se não torna plenamente compreensível, até à consulta de algumas das primícias da expansão missionária no Oriente?
Foram considerações puramente intelectuais que me aproximaram da obra literária e do legado benemérito de D. Manuel. Comecei por ler, vai para vinte anos, mal se dera a público, um autor que discorria com satisfação e competência em assuntos de bibliografia, que teve a fortuna de poder dizer coisas não sabidas e de retificar sem presunção opiniões menos exatas, e, mais tarde, ao contato direto do seu espólio bibliográfico, animado pelo zelo e pelo incentivo do Dr. António Luís Gomes, acabei por descobrir um Homem Bom, com qualidades e virtudes que cativam a minha maneira de ser e de compreender a vida moral e de relação. Se como estudioso prezo a memória do escritor, que honradamente se esforçou por que os seus juízos fossem acertados e imparciais, embora dissinta de alguns, como cidadão também respeito a memória do Rei equânime na próspera e na adversa fortuna, cuja consciência susteve com dignidade e escrúpulo o cetro da Senhora Dona Maria Segunda.
ADVERTÊNCIA
O presente catálogo foi organizado por iniciativa do digno Presidente do Conselho Administrativo da Fundação da Casa de Bragança, Sr. Dr. António Luís Gomes, sem outra pretensão que não fosse a de dar a conhecer a existência de algumas das preciosidades que D. Manuel II reuniu e hoje se guardam na Livraria do Paço Ducal de Vila Viçosa.
Por isso, são sumárias as descrições dos livros aqui referidos e são concisas as notas apostas, sem intenção crítica ou científica, orientadas, no geral, pelo propósito de atrair a atenção para o interesse do livro a que respeitam ou para a conveniência de ele ser estudado.
A enumeração é feita por ordem cronológica, o que permite avaliar globalmente as características gerais da atividade tipográfica portuguesa durante os séculos XV e XVI e a extensão da coleção de D. Manuel.
A secção camoniana foi organizada pelo Dr. João de Figueiredo, conservador do Museu-Biblioteca da Casa de Bragança, a quem também pertencem as respetivas notas; e são do punho do Sr. José de Sousa Cardoso, funcionário da Biblioteca Pública Municipal da Figueira da Foz, os verbetes relativos aos títulos dos livros das restantes secções, de harmonia com o critério que orientou a seleção. A um e outro apresentamos os nossos agradecimentos.