Morte e imanência no pensamento de Antero de Quental

Se acaso algum resíduo da crença religiosa da adolescência ainda latejava no fundo da sua alma, a antevisão da morte dissipou-o definitivamente, porque a sua mente de “naturalista” e de “idealista” afastara por incongruente com a “ordem natural das coisas” qualquer recurso à transcendência divina, qualquer explicação fora do terreno da causalidade natural e lógica, qualquer consolo fora da integração da consciência no ser profundo e moral da Humanidade. Confortava-o e robustecia-lhe o ânimo uma “alta filosofia moral”, convencendo-o de que não corria o “perigo” de “pensar só e isolado da comunhão do pensamento geral”, infundindo-lhe “paciência e paz” e dando-lhe o “viático para a [derradeira] viagem”, e esta filosofia outra não era que a imanência plena e necessária de todo o acontecer, assim físico como humano.

O pressentimento da proximidade da morte, que frequentemente abre a via da conversão religiosa, apesar de ocorrer em plena pujança do talento e de se dar numa quadra de fogoso incentivo de ação reformadora, não lhe quebrantou o ânimo com a inquietude do destino, nem o desligou da Natureza, gerando-lhe a sensação da soledade e com ela a do desapego e aniquilamento dos seres e coisas que enchem a existência que se vive.

Na história das vicissitudes da consciência, Antero deu-nos com esta experiência um exemplo revelador do seu ser profunda e altamente significativo.

Ao contrário de Pascal, que no êxtase da noite do que se chama a sua “segunda conversão”, em comunhão “com o Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob”, atingiu a certeza plena e a renúncia total e ditosa a “l'usage délicieux et criminel du monde”, Antero sentiu que a Morte é um acontecimento que não afasta a consciência da solidariedade humana e que se realiza e esgota na imanência da ordem universal que enlaça tudo o que ocorre no Universo.

Longe de lhe retrotrair a sensibilidade e a mente aos caminhos da transcendência e da crença da meninice, a experiência que vivia conduziu-o, sem temor e sem angústia, a. procurar uma resposta ao problema da Morte na sequência da “filosofia da Revolução”, que professava.

Proudhon abriu-lhe e facilitou-lhe o caminho com o quinto estudo (L'éducation), especialmente nos capítulos V e VI (L'homme en face de la mort), do De la Justice dans la Révolution et dans l'Eglise. Nestas páginas do “Mestre”, que não só lhe falava à inteligência mas a todas as “potências humanas”, colheu Antero não só a têmpera e disposição de ânimo perante a Morte, mas ainda o teor da conceituação das poesias de que é tipo o soneto Eutanásia:

Que nome te darei, austera imagem,

Que avisto já num ángulo da estrada,

 Quando me desmaiava a alma prostrada

 Do cansaço e do tédio da viagem?

Em teus olhos vê a turba uma voragem,

 Cobre o rosto e recua apavorada...

 Mas eu confio em ti, sombra velada,

 E cuido perceber tua linguagem...

Mais claros vejo, a cada passo, escritos,

Filhos da noite, os lemas do Ideal,

Nos teus olhos profundos sempre fitos...

Dormirei no teu seio inalterável,

Na comunhão da paz universal,

Morte libertadora e inviolável!

Este soneto dá-nos a posição espiritual do Poeta perante a sua experiência do termo próximo da existência, que avistava “já num ângulo da estrada”. Diz-nos que exalaria o derradeiro suspiro eutanasicamente, isto é, sem sofrimento, mas não aponta nem sugere a razão porque acolheria a Morte como “libertadora”, em cujo “seio inalterável” dormiria “na comunhão da paz universal”, que é a segunda condição da eutanásia, segundo Proudhon. Confessa que “cuida perceber a linguagem” da Morte, mas não expressa uma só palavra que desvende com clareza o que tinha na mente; é legítimo, porém, admitir que a razão em virtude da qual os Sonetos que têm a morte por tema  “não são um paradoxo”, se encontra na conceção da imanência, trave-mestra da fundamentação filosófica do Programa para os trabalhos da geração nova em que por então trabalhava, e na necessidade metafísica do termo da existência dos seres limitados, que as duas páginas do Ensino sobre as bases filosóficas da Moral, ou Filosofia da Liberdade, que têm por título “Filosofia da Morte” e “A Metafísica da Morte”, procuram justificar.

Como boa parte dos homens da sua idade, Antero foi convictamente programático. Teve por sem dúvida que a injustiça social e a desorganização pública procediam fundamentalmente de uma crise mental, pelo que, consequentemente, o restabelecimento da ordem devia iniciar-se no plano da inteligência para se rematar no da atividade político-social. Não tem outra origem o programatismo de Teófilo Braga, que encontrou no Positivismo as bases da reorganização mental e política, assim como o de Oliveira Martins, que não hesitou em traçar o programa da revolução socialista, de olhos postos num Estado essencialmente regulamentador e administrativo, e o de Antero, que por 1871 começou “a trabalhar seriamente” no Programa para os trabalhos da geração nova.

“Caso novo na literatura portuguesa”, o Programa dividia-se em três partes, sendo a primeira destinada às Ideias, “que é uma espécie de Filosofia da Revolução”, e a segunda e terceira, às Instituições e aos Sentimentos, constituindo as “aplicações dos princípios estabelecidos”.

“Que bela coisa, meu caro, escrevia a Oliveira Martins (7-7(?)-1871), não seria, com efeito, ter dado o íntimo pensamento da Revolução em meia dúzia de ideias, claras, ligadas entre si e de que tudo naturalmente se deduzisse!”

Nesta “meia dúzia de ideias” era trave-mestra a conceção da imanência, ou mais propriamente, “a evolução histórica da Transcendência para a Imanência [que] já vai sendo para mim uma espécie de ideia fixa; quase não posso ler nem pensar senão sobre este assunto”. O porquê desta evolução era “abstrato”, residindo, a seu ver, “na evolução físico-metafísica efetuada desde Platão até à Renascença”. O “ponto” consistia em saber se “o espírito antigo, representado no que tinha de mais alto, as suas escolas filosóficas, [podia] constituir uma filosofia positiva, isto é, dar uma solução positiva à metafísica e cosmogonia, estabelecendo, por conseguinte, o ponto de vista da Imanência.

“Se sim, então é certo que só causas externas à íntima evolução do pensamento antigo (Oriente, Bárbaros) puderam perturbar o curso normal desse desenvolvimento, e que o Cristianismo e Idade Média se devem considerar fortuitos.

“Se não, devemos concluir que, dum modo ou de outro, um Cristianismo, uma Ultratranscendência, e por conseguinte, uma Idade Média eram necessários, eram fases lógicas da Evolução.

“Se uma filosofia positiva não era ainda possível, então a filosofia devia inclinar cada vez mais para o misticismo, e auxiliar assim o movimento da recrudescência religiosa das massas, temperando-o, espiritualizando-o, metafisicando-o, mas dando-lhe força e extensão pasmosas. Isto foi o que aconteceu: e eu sustento que devia acontecer, porque não vejo na ciência nem na metafísica antiga um único elemento sério de filosofia positiva”.


?>
Vamos corrigir esse problema