Morte e imanência no pensamento de Antero de Quental

O problema subjacente a estas afirmações é um problema de “história ideal”, ou seja, o da “necessidade abstrata dum largo período de Transcendência, termo fatal na passagem do Naturalismo para a Imanência”.

Esta função explicativa procede, evidentemente, do conceito de imanência como atividade inerente ao ser ou ao acontecer, e que no próprio ser ou acontecer tem princípio e fim. Em si e na sua inserção na História, a imanência é a razão de ser da constituição da positividade na Ciência e na Filosofia, sem a qual já não podem ser pensadas as diversas manifestações da realidade, e designadamente a ocorrência da Morte.

A Morte, porém, não é somente uma ocorrência natural, porque é, também, a juízo de Antero, a consequência de uma necessidade metafísica inerente aos seres limitados e individuais. É o que se propõem mostrar, na sua densa concisão, as páginas da “Filosofia da Morte” e da “Metafísica da Morte”.

O primeiro destes escritos considera inerente ao eu pessoal a consciência da limitação e da finitidade, em virtude da qual não é para si mesmo que o ser humano “deve viver, mas para algo de eterno”. Se o eu não fosse finito, seria imortal, e portanto absoluto, isto é, teria início e fim em si mesmo, e sem possibilidade de progredir, adorava-se a si próprio; mas como é finito e mortal, não se basta a si mesmo, é suscetível de progresso, ou por outras palavras, tem “a capacidade e o desejo de sacrificar a satisfação do que é passageiro ao que o não é”. Consequentemente, a Morte, que é a objetivação da consciência da finitidade, “é a base da vida moral”.

A Metafísica da Morte transpõe a Morte do plano vivencial humano para o plano metafísico”, atribuindo-lhe uma razão em virtude da qual “é necessária”.

É que “os seres são necessariamente relativos, limitados e imperfeitos, por isso que são seres reais, visto que a realidade exclui o absoluto e a perfeição: absoluto e perfeição não se podem conceber senão como tipo ideal e não como atualidade e realidade. Mas por outro lado, a tendência desses seres relativos é realizarem, nos limites das suas condições, aquele tipo ou ideal e como essas condições são limitadas, limitada é essa realização, donde resulta que, realizado esse fim nos limites possíveis, o ser estaciona, deixa, pois, de ser apto para continuar a realizar o seu fim e perde por conseguinte a sua razão de ser. A Morte é mais do que a manifestação física desta necessidade metafísica”.

Propriamente, Antero não diz em que consiste o ser da Morte. Acentua somente que a Morte é metafisicamente necessária, por constituir ontologicamente a integração do ser individual, e portanto limitado, no ser total. O indivíduo não é ser-em-si nem para-si; o seu destino realiza-se no ser total pela cessação do que constitui precisamente as notas singulares da individualidade, sendo a compreensão deste sentido e desta necessidade metafísica que dá significado conceptual ao terceto final do soneto Eutanásia:

Dormirei no teu seio inalterável, Na comunhão da paz universal, Morte libertadora e inviolável!

A “grave questão do bem-morrer”, à luz da filosofia da Revolução, ou mais propriamente do ideário de Proudhon, não comportava os problemas que a religião e as filosofias da transcendência suscitam, nem tão-pouco o dramatismo da soledade da consciência, da angústia da vivência do limite e da inquietude do porvir.

Desta rápida análise se depreende que, inicialmente, a experiência da morte que Antero viveu nos princípios de 1874 o não conduziu ao desespero moral nem ao pessimismo na conceção da Vida. Dois anos depois, a situação espiritual de Antero começa a ser outra: no horizonte metafísico surge-lhe a transcendência como categoria explicativa da realidade e o pessimismo como estimativa da existência que se vive.

“No meu estado de doença, quase entrevado, pois já é raro que possa sair de casa, que seria de mim se não fosse a leitura?”, escrevia em 1875 a João Machado de Faria e Mala. Os livros tornam-se seus companheiros constantes e inseparáveis. A doença exortava-o à evasão pela leitura, mas a par da assimilação, reflexão e projeção do pensamento alheio no seu próprio pensamento ela suscitou também, progressivamente, a perda do domínio da vida afetiva, “uma inquietação e quase angústia de imaginação” e “a tendência para o desequilíbrio” como expressivamente confidenciou a Oliveira Martins em Dezembro de 1876.

A sua consciência de enfermo adquire então novas dimensões e ressonâncias, à medida que a mente do Poeta assimila e se nutre de leituras e de reflexões que tem por centro a conceção pessimista da existência.


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