Saber e filosofar

Nenhum juízo de Auguste Comte logrou entre nós tão largo assentimento como o da inutilidade da especulação metafísica e sua superação definitiva pela “maneira de pensar que consiste em considerar as teorias, seja qual for a ordem das ideias, como tendo por objecto a coordenação dos factos observados”, para empregar as próprias palavras do Curso de Filosofia Positiva (Advertência).

Interpretando o sentir dominante, Teófilo Braga, com razão e, porventura, orgulho, pôde dizer na mensagem dos positivistas portugueses, lida na inauguração da estátua de Comte em Paris, em 18 de Maio de 1902: «Existe uma nova atmosfera mental: Auguste Comte, coordenando todas as concepções definitivas apresentadas por Aristóteles, Bacon, Descartes, Hume, Condorcet, Adam Smith e Bichat, fundou a Filosofia Positiva, partindo da hierarquia teórica para terminar na subordinação dos fenómenos sociais à observação científica”.

Viessem de Comte, de Herbert Spencer, de Stuart Mill, de Ardigó, ou se soltassem da fadiga que as páginas metafísicas geram em quem nunca foi despertado pelo apelo da problematicidade e da abstracção, os pregões de positivismo, de cientismo, de inutilidade da especulação filosófica e de derrocada de todas as construções metafísicas, enraizaram-se na nossa terra e influíram decisivamente em todas as manifestações do nosso pensamento durante a última quadra novecentista, que intelectualmente se prolongou até ao incêndio da Primeira Guerra Mundial.

Aqui e além, veladamente, surgia um ou outro reparo dos que sentiam a falsidade da concepção comtiana da Psicologia, ou por outras palavras, a irredutibilidade do espírito à matéria e do pensamento ao movimento, mas esses próprios como que abdicavam perante a evidência da noção de positividade, da unidade morfológica da Ciência e da estrutura unitária do método científico.

Antero de Quental, nalguns períodos das Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX deixou gravada a sua repulsa, com mais vigor moral que alicerce lógico, mas ninguém prestou ouvidos às suas razões de hegeliano retardatário, porque a todos se impusera como tópico indubitável o pressuposto de que a factualidade perceptível, assim no mundo físico como no mundo social e moral, está submetida à mesma legalidade mecânico-causal. Reconhecia-se como paradigma o método das ciências exactas e partia-se do princípio de que todos os fenómenos, fosse qual fosse a região ontológica em que se produzissem, podiam ser expressos mediante fórmulas matemáticas, senão actualmente, pelo menos no futuro, com o progresso da adequação dos métodos, de raiz unitária sob a só aparente diversidade.

Por várias razões, cuja individuação está fora do nosso objetivo, caíram no esquecimento e no abandono algumas das concepções mais características do positivismo de Comte, designadamente a “lei dos três estados”, a exclusão da Psicologia do quadro das ciências, a total submissão à teoria da ciência natural do que nasce e fenece com a sigla peculiaríssima do vivido e do sentido, e a todos se tornaram evidentes a estreiteza e a insuficiência da metodologia e da problemática de Teófilo Braga, paladino obstinado e maciço da atitude doutrinal e das “sínteses” do Curso de Filosofia Positiva.

Deram-se posteriormente outras manifestações hostis ao pensamento metafísico, principalmente como reverberação da teoria do incognoscível de Spencer, do empirismo de Stuart Mill e, já nos nossos dias, do positivismo lógico, de sorte que, a despeito do oblívio das concepções comtianas, se mantém vivaz, principalmente nos laboratórios de investigação, a tendência a que o Positivismo de Comte deu expressão sábia, clara e facilmente persuasiva.

É possível que a persistência desta atitude, que provavelmente jamais deixará de ter adeptos e defensores, radique na tendência ancestral da nossa grei para o concreto, mas a sua força, aliás mais espontânea que reflectida, brota da aspiração do pensamento a racionalizar a realidade, a qual constantemente rejuvenesce com os resultados tangíveis alcançados pelas ciências exactas e pela concepção mecanicista da Natureza. O viço com que o anti-metafisicismo constantemente remoça é, pois, natural, conduzindo facilmente à opinião de que as extraordinárias conquistas das Ciências feriram mortalmente a ambição tradicional da Filosofia de formular uma visão sinóptica do Mundo mediante conceitos que compreendam a totalidade das manifestações da realidade.

Se a tendência positivista se remoça naturalmente é porque as tendências que lhe são contrárias, designadamente a que se exprime pela atitude filosófica, se não submetem nem sucumbem, por também terem a sua razão de ser.

Com efeito, o mundo da teoria física não é o único mundo que o homem vive no pensamento e pela acção. A realidade não se lhe oferece apenas sob a forma de objectos tangíveis e perceptíveis, isto é, sob a forma da exterioridade. Dá-se também sob a forma de subjectividade e de interioridade, e a tendência positivista, ou repele esta maneira de ser real, privando-a de significação científica, ou considera-a como coisa, despojando-a da sua peculiaridade irredutível. Reduzindo o conjunto da realidade à Física e a Física à Mecânica, somente adquirem acesso à consideração legítima do pensamento as manifestações captáveis sob a forma de coisa ou de relação mensurável, e porque desconhece a temporalidade e a vida vivida, a atitude positivista deixa sem resposta muitos e dos mais inquietantes problemas e compele a Filosofia ao contra-senso de se pensar como inexistente.

Daí, a instância desta pergunta: deve o filosofar ceder inteiramente o passo ao saber que investiga e relaciona os resultados adquiridos num sistema coerente de leis, ou nos próprios termos do Curso de Filosofia Positiva (ibid.), “ao estudo das generalidades das diferentes ciências, concebidas como submetidas a um só método e como formando as diferentes partes de um plano geral de investigações” ?

O exame cabal da pergunta implica, como é óbvio, o processo crítico dos fundamentos das concepções positivistas. O nosso intento, porém, não é tão ambicioso: pretende somente examinar se o saber científico é um saber que satisfaça integralmente a instância teorética, ou, talvez mais precisamente, se é um saber que exclui ou priva de fundamento o filosofar.

A condução do que escreveremos não obedece a qualquer intenção polémica, embora tenhamos principalmente presente a representação do sector cultural português ainda vinculado, com mais ou menos fidelidade, às raízes do positivismo comtiano e sobretudo às explanações de alguns dos seus epígonos.

É característica do nosso tempo a sobrestimação do valor intrínseco, dos recursos e das possibilidades da Ciência, e, como sua projecção social, o crédito ilimitado concedido à tecnocracia, não raro sem garantia prévia. A cientificação tornou-se, por assim dizer, o objetivo ideal de todo o pensamento que se articula em raciocínios, e cientificar o pensamento significa formular juízos exatos, que estatuam o assentimento universal em virtude de serem estabelecidos por métodos rigorosos que eliminam a subjectividade.


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