Galileu e a cultura portuguesa sua contemporânea

DISCURSO PROFERIDO NA SESSÃO COMEMORATIVA

DO TERCEIRO CENTENÁRIO DA MORTE DE GALILEU,

REALIZADA NA FACULDADE DE LETRAS

DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Ao Dr. Duarte Leite, respeitosa e gratamente.

No decurso dos setenta e oito anos da sua vida, Galileu não necessitou de percorrer os caminhos que o poderiam conduzir a Portugal, nem os acasos da existência ou as exigências da sua atividade científica o puseram em contato com as pessoas e com os escritos de numerosos portugueses; não obstante, Portugal não lhe foi terra incógnita nem alguns dos nossos mestres seus contemporâneos desconheceram, pelo menos em parte, a sua obra genialmente criadora e fecunda. Permiti, por isso, que a minha contribuição para esta festa comemorativa, na qual com profunda satisfação vejo associadas as duas Faculdades de Letras à Faculdade de Ciências de Coimbra sob a égide da nossa Universidade secular, se ocupe das relações científicas de Portugal e da Itália em torno da pessoa e da obra de Galileu e apenas durante a sua vida.

A dar crédito a Angelo Fabbroni, o conhecido autor da Historia Academiae Pisanae, foi o nosso compatriota Rodrigo da Fonseca quem ensinou a Lógica a Galileu quando este frequentou a Universidade pisana em 1580-1581 como estudante de Artes. Parece que não existe atualmente documentação deste facto; mas a circunstância do erudito Antonio Favaro lhe ter dado acolhimento na edição nacional das Obras de Galileu, admirável monumento em tudo digno da Itália e do génio científico que rememora, é quase prova segura da exatidão do informe do velho cronista.

Deste período da escolaridade de Galileu apenas chegaram até nós os escritos que Favaro reuniu e pela primeira vez publicou sob o título de Juvenilia, os quais conservam o encanto das primícias temporãs e o claro testemunho de que o instaurador da física moderna estudara profunda e miudamente a física e a cosmologia aristotélicas antes de as sepultar no jazigo da história da Ciência.

Dos seus seis mestres de Pisa, parece que as Juvenilia apenas acusam o ensino de re cosmologica de Francesco Buonamici, e, consequentemente, não possuímos elementos para rastrear o ensino de re logica de Rodrigo da Fonseca, embora não seja atrevida a conjetura de ele haver transmitido a velha tradição aristotélico-escolástica. Este nosso compatriota tornou-se famoso como lente da Theorica ordinaria medicinae nas Universidades de Pisa e de Pádua e temos por muito provável, senão certo, que Galileu, que primeiramente fora seu discípulo e pouco depois em 1585 seu colega naquela Universidade, manteve com ele relações de amizade, pois não encontramos outra explicação para a carta de 6 de Maio de 1622 em que Lorenzo Pignoria comunica a Galileu a morte do celebrado autor de vários livros de Medicina.

A carência de informes acerca do ensino e do saber lógico de Rodrigo da Fonseca é porventura sensível a quem tente escrever-lhe a biografia intelectual, mas não o é no ponto de vista do desenvolvimento do pensamento do seu imortal discípulo. E a razão é simples. É que Galileu foi um físico e não foi, rigorosamente, um filósofo. Há, sem dúvida, em obras suas, designadamente no 11 saggiatore (1623), no Dialogo sui massimi sistemi (1632), nos Discorsi e dimostrazioni materrzatiche intorno a due nuove scienze attinenti alia mecanica e i movimenti locali (1638), o esforço admirável e como que a vibração de uma inteligência que se esforça por dominar o método mais apropriado, por discernir a hipótese mais consistente e coerente, e por alcançar as noções e ideias mais claras em ordem à explicação exata e à consideração quantitativa dos fenómenos.

Tudo isto é, mais ou menos, atualmente, objeto de exame histórico ou de consideração filosófica, mas se, como cumpre, situarmos Galileu na sua época e confrontarmos a sua problemática com a problemática filosófica que tradicionalmente se ensinava nas escolas, pode asseverar-se que só se ocupou de filosofia precisamente para criticar e para se emancipar da sua tutela.

Um outro compatriota nosso se diz ter entrado no convívio de Galileu: Manuel Bocarro Francês, doutor por Montpiller e Alcalá e operoso escritor astrológico. Diz Barbosa Machado, na Biblioteca Lusitana, que fora “por indústria de Galileu” que se imprimiu em Roma, em 1626, o livro de Bocarro intitulado Luz pequena lunar e estellifera da Monarchia Lusitana: explicação do primeiro Anacephaleoses impressa em Lisboa 1624. Sôbre o Principe enciuberto, e Monarchia alli prognosticada: referem-se os versos das 4 Anacephaleoses porque os Castelhanos impedirão imprimirem-se com outras.

Não lográmos ver este livro, cujo título prefigura, a um tempo, vaticínios astrológicos e intenções patrióticas, nem de qualquer forma contraprovar o informe do padre-mestre da nossa erudição bibliográfica.

Sendo exato, o patrocínio de Galileu, se cientificamente é paradoxal, visto auxiliar a impressão de um livro de semblante astrológico, patrioticamente é para nós gratíssimo, porque significa proteção, e porventura solidariedade, à intenção, como tudo indica, de Manuel Bocarro concorrer para que o espírito de independência pátria se soerguesse na luta contra o domínio castelhano.

Poucos portugueses entraram, assim, no círculo das relações pessoais de Galileu, e o mesmo se pode dizer do comércio epistolar.

O epistolário de Galileu, como o dos grandes do seu século, designadamente Descartes, Mersenne, Huyghens, é abundante e por vezes valiosíssimo para a história científica, mas dentre ele apenas nos aparece uma carta de Vicente Nogueira escrita em Roma em 28 de Outubro de 1638, na qual o erudito amigo do Marquês de Nisa, que, quando embaixador em Paris, frequentara a cela do Padre Marin Mersenne, pede a Galileu, “di quelli grandi ingegni e scienza che Dio mostra ai mondo rade volte e interponendo centene de anni», lhe proporcione a leitura de alguns dos seus livros e do Dialogo della musica antica et della moderna de seu pai, Vincenzio Galilei.

Em poucas palavras se narram, pois, as relações pessoais e epistolares de Galileu com compatriotas nossos, e por isso cumpre que dirija-mos agora a atenção para o campo das ideias, mais difícil de explorar embora seja também pouco variado.

Dentre os fenómenos naturais observados e observáveis em Portugal, Galileu refere no Discorso del flusso e reflusso del mare, em torno de uma teoria que lhe foi querida e constitui um dos seus erros, que o período das marés em Lisboa é de 12 horas, o que a seu ver provava que o período de 6 horas havia sido estabelecido pelos antigos e grande parte dos modernos em virtude da observação limitada do que viam no Mediterrâneo. No domínio dos eventos naturais é esta a menção mais relevante das que faz ao nosso País; e no campo da bibliografia o silêncio ainda é maior, pois não cita qualquer livro de autor genuinamente português.

Não obstante, admitimos a hipótese de ter lido alguns escritos de Pedro Nunes, especialmente o De crepusculis, três vezes editado no século XVI, uma das quais em Basileia, já porque o matemático italiano João Batista Benedetti mediante as suas críticas chamou a atenção dos seus compatriotas para a obra do nosso cosmógrafo, já, sobretudo, porque Tycho-Brahe, então no fastígio do renome, lhe não regateou louvores e Cristóvão Clávio, de grande nomeada e influência, correspondente de Galileu, rendeu o maior elogio a Pedro Nunes, resumindo proposições do De Crepusculis numa Digressio geometrica de crepusculis que acrescentou aos seus divulgadíssimos comentários à Esfera de Sacrobosco; e além desta obra, o De arte atque ratione nauigandi, onde o nosso matemático critica o sistema de Copérnico, sugerindo um outro, eclético, que prometeu expor em livro próprio e não chegou a dar ao prelo, se é que o escreveu.

Como é óbvio, a ausência de citações bibliográficas lusitanas nos escritos de Galileu impede-nos de trilhar a via mais firme para o estudo das relações intelectuais; por isso, somos naturalmente levados para os ínvios atalhos das conjeturas e para o pélago das ideias gerais. Comecemos por estas.

O contributo capital dos Portugueses na aurora dos tempos modernos consistiu em colocar o espírito europeu perante assombrosas e insuspeitadas realidades, que não se harmonizavam com a índole explicativa nem se integravam nos quadros do saber tradicional. Perante os descobrimentos, que, na frase de Hurnboldt, como que duplicaram a obra da Criação, o saber tradicional ficava impotente e estéril, quer no campo teórico, quer prático, já que a ciência reclamava uma nova ars inueniendi e a realidade e as novas circunstâncias de facto não se podiam dominar tecnicamente com valorizações teleológicas.

Com efeito, perante as novas exigências vitais, a atitude aristotélica tornara-se cientificamente improfícua, dado que visava fundamentalmente a estabelecer a hierarquia dos conceitos, isto é, a situar cada coisa e a respetiva ideia na sua classe, e tecnicamente estéril, pois a ambição de domínio da Natureza impunha que o espírito atuasse por análise, isto é, pela decomposição do conjunto nos elementos que o constituem. Daí a feição analítica que a Ciência reveste no século XVII e de que é expressão suprema a “nuova scienza» de Galileu, o qual perante os corpos em movimento não se interrogou acerca da essência e das espécies do movimento, mas corno é que um corpo se move e que movimentos elementares constituem o seu movimento concreto. Pela índole, pela metódica, pelos resultados da “nuova scienza», Galileu é, assim, expressão altíssima da modernidade científica, na medida em que esta radica na farta messe de factos revelados pelos descobrimentos e nas exigências vitais do domínio da Natureza, do qual não devem separar-se os movimentos de expansão colonizadora.

Nem só estas raízes, algo longínquas, prendem Galileu à nossa terra; outras há, mais diretas e próximas, porventura.

Como é sabido, as viagens de longo curso vieram pôr com acuidade o problema da determinação fácil das longitudes geográficas —, a arte de leste-oeste, como se lhe chamou entre nós com mais ou menos constância, entrado ainda o século XVII. Os nossos cosmógrafos, sentindo, aliás, as exigências do problema, não o resolveram, nem o podiam resolver com os elementos que possuíam. Isso vê-se claramente em Pedro Nunes, nas considerações que no De erratis Ororttii Finaei faz a propósito do velho método dos eclipses da Lua e do então novo das distâncias lunares, proposto por João Werner, astrónomo famoso da escola de Nuremberga, e por Orôncio Fineu, matemático francês.

E com efeito, enquanto o céu fora observado apenas com a vista desarmada e os instrumentos da medida do tempo eram de duração exígua, pouco práticos e nem sempre precisos, como os relógios de Nuremberga, o problema não tinha resolução fácil; a partir, porém, de 1609, ano em que Galileu construiu o telescópio, que aliás reinventara e imediatamente, aperfeiçoou no poder de alcance, e o dirigiu para a amplidão celeste, descobrindo em Janeiro de 1610 os satélites de Júpiter, a que chamou sidera medicea e que entusiasticamente logo anunciou ao mundo sábio no Sidereus Nuntius, acudiu ao “ingegno grande» e às fatiche atlantiche” do genial observador a possibilidade de um novo, seguro e universal método de resolução do “problema massimo e maraviglioso” da longitude, baseado no movimento destes satélites, mormente depois de ter achado, em 1611, o tempo das respetivas revoluções. Não importa ao nosso ponto de vista o exame da estrutura científica nem o relato das vicissitudes e dificuldades de ordem económica que este método encontrou na Itália, na Espanha, em França e na Holanda, aliás historiado já, e sabiamente; baste apenas salientar que Galileu nele pensou fervorosa e reiteradamente, não desistindo perante a sucessiva recusa de governos e de potentados, colhendo informações de viajantes regressados do Oriente, e informando-se de outros métodos que poderiam concorrer com o seu.

Entre estes conta-se, pelo menos, o que Francesco Stelluti lhe comunicou por carta de 2 de Dezembro de 1628, que “Pietro della Valle, quel gentil huomo Romano ch'è stato in Persia et in India: e raccontando varie cose dei suo viaggio e navigationi, disse che un Padre Giesuita Portughese haveva hora trovato un instrumento, come horivolo con polvere, da poter con esso osservare le longitudini delle città et altre parti del mondo, e che perciò era stato chiamato in Spagna”.

Tenho por sem dúvida que se trata de Cristóvão Borri, ou Bruno, que foi realmente jesuíta, mas natural da Itália que não de Portugal; veio, porém, para o nosso País e aqui ensinou Astronomia nos Colégios que a Companhia tinha em Coimbra e em Lisboa.

Da sua atividade científica chegaram até nós apenas dois livros, a Collecta astronomica ex doctrina P. Cristophori Borri, mediolanensis, ex Societate Jesu, saído à luz em Lisboa em 1631, e a Arte de Navegar, redigida em português antes de 1628 e publicada em 1940, segundo o manuscrito da Biblioteca da Universidade de Coimbra, pelo meu saudoso amigo Comandante Fontoura da Costa, havendo desaparecido o manuscrito do Regimento que o P. Christovam Bruno da Comp. de Jesus, por ordem de S. M., dá aos pilotos das aos da India para fazerem as experiências sobre a invenção de navegar de leste a oeste.

Em cada um destes livros redigidos na nossa língua expôs um método diferente para a determinação da longitude.

Na Arte de Navegar encontra-se, com efeito, a descrição do “horiuolo con polvere» da carta de Stelluti, que, cumpre acentuar, foi escrita nos fins do ano em que Borri redigiu este seu livro. Em rigor, não se tratava de uma invenção, mas do “aperfeiçoamento” para empregar a própria palavra de Borri, da velha ideia de se aplicar o relógio à determinação da longitude. Consistia na construção de uma ampulheta com a duração de 6 horas pelo menos, e, podendo ser, de 12 ou de 24, as quais se contavam nas âmbulas, e com a divisão do intervalo entre as marcações das horas em 15 partes, correspondentes aos 15 graus que o Sol anda numa hora. A areia devia ser posta a correr no porto de saída ao meio-dia, tomado pelo astrolábio, e, colocada a ampulheta no sítio mais estável da nau, no pé do mastro grande, por forma que se conservasse sempre perpendicular quaisquer que fossem os balanços a bordo, incumbiam-se dois marujos de a vigiarem e de a virarem ao cabo das horas para que fora construída, de maneira que nunca parasse.

Teoricamente, o «aperfeiçoamento” era aceitável, visto a determinação da longitude estar essencialmente ligada ao problema da hora; praticamente, porém, a conservação da hora tornava-se precária e dispendiosa, pelo menos nas viagens longas.

Ignoramos se Galileu chegou a ter notícia pormenorizada deste “aperfeiçoamento”, que talvez o fizesse sorrir, mas é de crer que o desconhecesse, porque a Arte de Navegar se manteve inédita até aos nossos dias; o que pode imaginar-se, no entanto, é a trama da extensa rede de informadores que o punham ao corrente do que na Europa ocorria acerca da determinação das longitudes e do respetivo acolhimento junto dos governos.

No Regimento… Borri apresentou outra “invenção de navegar de leste a oeste”, baseada nas variações da agulha magnética e no traçado das respetivas linhas pelos pontos de igual declinação, tractus chalyboclytici como arrevezadamente os designa. Este invento, na essência pouco original e do qual Borri muito fiou, não parece ter chegado ao conhecimento, sequer perfunctório, de Galileu, dado que o inventor o recataria zelosamente, na ambição da glória e dos tentadores 6 mil ducados de renda perpétua, além de mais 2 mil de renda vitalícia e de mil de imediato recebimento, prometidos pelo Governo de Espanha em 1598, e das 100 mil libras que cinquenta anos depois anunciava o Governo da Holanda.

Pelo que vimos dizendo, Borri foi o principal concorrente que Galileu encontrou em Portugal relativamente aos prémios da longitude, mas é curioso notar que foi pelo ensino deste seu Opositor e pelas páginas da sua Collecta astronomica, publicada, como já disse, em 1631, mas reportando-se a escritos anteriores a esta data e cujo título primitivo parece ter sido outro, que se divulgaram entre nós as sensacionais descobertas astronómicas que Galileu anunciou em 1610, no Sidereus Nuntius.

Pode conjeturar-se que o nome de Galileu entrou nas nossas escolas por intermédio da edição de 1611, de Mogúncia, do terceiro volume das Obras de Cristóvão Clávio, no qual este famoso matemático, por antonomásia o Euclides da Companhia de Jesus, comentando a Sphera de Sacrobosco, enumera concisamente, referindo-se ao Sidereus Nuntius, os descobrimentos do genial observador, e conclui que, se são exatos, cumpre que os astrónomos pensem na maneira de construir a esfera por forma que eles tenham uma explicação coerente.

Tais palavras, vindo de quem vinham e escritas em livro tão divulgado e estudado, como que constituíam convite aos professores de Astronomia dos colégios da Companhia para que revissem a tradicional conceção ptolemaica da máquina celeste; mas para além disto pode ainda conjeturar-se, com mais verosimilhança, que fora a sensacional revelação do telescópio, longispício ou tubo ótico, como parece que se lhe chamou de início, na nossa língua, que tornou entre nós Galileu objeto de conversações e de curiosidade, enquanto o não foi de disputas. Sabe-se que, seguindo porventura a descrição de Tycho Brahe na Astronondae instauratae mechardca (1602), D. André de Almada, lente de Teologia e Reitor da nossa Universidade de 1638 a 1640, fizera construir um quadrante, com o qual, numa roda de amigos, repetira observações do famoso astrónomo dinamarquês; e que, mediante um telescópio — longispicii ope acurata diligentia sigillantim ac pensiculatim— foi observado em Coimbra, na noite do sexto dia da Lua Nova de Julho de 1627, o aspeto da Lua, do qual se fez uma gravura, que é preciso seja o mais antigo testemunho gráfico de uma observação astronómica realizada em Portugal.

Devem-se estes informes a Cristóvão Borri, a quem pertence também, segundo cremos, a prioridade da divulgação entre nós das sensacionais revelações astronômicas de Galileu, cujo nome, aliás, por prudência ou hostilidade, relega para secundaríssimo plano, quando não sepulta em injusto esquecimento. Dos escritos galileianos, Cristóvão Borri cita apenas uma Epistola ad Marcum Welserum, o que nos habilita a afirmar que leu a Istoria e Dimostraziorti intorno alie macchie solari e loro accidenti comprese in tre lettere scritte all'ilustrissirno signor Marco Velseri Linceo duumviro d'Augusta consigliero di sua Maesta Cesarea, que Galileu deu ao prelo em 1613, em Roma, mas é incontestável que não só leu o Sidereus Nuntius, publicado em 1610, senão que o teve presente quando redigiu a De nouis apparentiis, quae nos tris temporibus obseruatae surtt, pois plagiou alguns dos períodos de Galileu relativos ao cálculo da altura das montanhas da Lua, inserindo-os sem referência no capítulo em que descreve as suas observações deste astro feitas em Coimbra, com o telescópio, em 1627.

É, pois, mediante estes dois livros que cumpre investigar a influência do genial observador entre nós, no período que nos ocupa, porque os demais escritos galileianos, posteriores ao impropriamente chamado primeiro processo de Galileu, isto é, à condenação em 1616 da teoria copernicana, à qual Borri se refere, só circunspectamente podiam ser lidos, antes mesmo do verdadeiro processo de condenação de Galileu (1633).

O vinco destas leituras encontra-se em vários períodos da Collecta mas está especialmente acentuado nas páginas dedicadas às De nouis apparentiis, quae nostris temporis temporibus obseruatae sunt, ou sejam as observações de Tycho Brahe e as devidas ulteriormente ao “benefício” do telescópio (tubus opticus).

São estas as que diretamente interessam agora, pois respeitam às descobertas de Galileu. Com efeito, após as nove páginas consagradas à descrição pormenorizada do telescópio — que cremos ser a primeira feita em Portugal—, encontram-se sucessivamente as seguintes revelações anunciadas no Sidereus Nuntius —: a existência de montanhas na Lua, de manchas no Sol, de fases nos planetas Vénus e Mercúrio, de satélites em Júpiter, do aparecimento e desaparecimento de duas “estrelas” aos lados de Saturno (fenómeno cuja explicação estava reservada a Huyghens) e, finalmente, a referência incidental à explicação da Via Láctea como aglomerado de estrelas.

Deixando sem grande reparo a injustiça que representa a omissão; do nome de Galileu em relação a 'algumas destas descobertas, atentemos na interpretação científica que Borri lhes dá.

Como é sabido, o Siderius Nuntius feriu mortalmente a solidez e a coerência da ciência tradicional e oficial, e tê-lo feito mediante a compenetração da observação e do cálculo constitui precisamente um dos títulos da glória de Galileu. Foram várias, com efeito, as consequências que a astronomia nova implicou, mas Borri atentou fundamentalmente em duas: na corruptibilidade do céu e na do movimento da Terra, admitindo aquela e repudiando esta.

Temos por seguro que foi, sobretudo, a descoberta das manchas solares que tornou entre nós o nome de Galileu objeto de disputas escolares. Concorreram para isso duas causas: a implicação antiaristotélica da descoberta e o amor-próprio da Companhia de Jesus.

Pela primeira, afirmando a existência de manchas solares, Galileu atacava a arreigada conceção, de procedência aristotélica, de que a substância celeste era incorruptível, destruindo um tópico fundamental da cosmologia e da física que se ensinavam entre nós, como aliás em quase toda a parte; e pela segunda, opunha-se o jesuíta Cristóvão Schener (1573-1650) a Galileu, contestando que a este coubesse a originalidade da descoberta. É que aquele jesuíta alemão, professor de Matemática e de Hebreu na Universidade de Ingolstadt, havia publicado em 1612, sob o pseudónimo de Apelles latens post tabulam as Tres epistolae de maculis solaribus, dirigidas a Marco Welser, e meses depois, ainda em 1612, o De maculis solaribus et stellis circa Jouem errantibus accuratior disquisitio.

Não podem contestar-se hoje as observações de Scheiner, mas também é incontestável que não foi repetindo Scheiner, mas por observação pessoal, que Galileu descobriu as manchas solares e desta descoberta extraiu as ruinosas consequências que ela acarretava para a ciência aristotélica-escolástica.

Cristóvão Borri refere-se a esta polémica, conferindo naturalmente ao seu irmão de roupeta a prioridade da descoberta, a qual desencadeou um temporal de disputas acerca da matéria, forma, lugar, movimento e duração das manchas. Defendendo a existência das manchas solares, pouco importa para o caso se por influência de Scheiner, se pela de Galileu, e a dos novos astros que a observação de Tycho Brahe e o telescópio revelaram, Borri, pela pena e, porventura, pelo ensino, abriu entre nós a primeira grande brecha na conceção aristotélica da matéria e do Mundo, quando quidem vidimus, escrevia, in caelesti regione nouas Stellas, et Cometas benerari; noua phaenomena in Pianetis, et circa Planetas obseruata. Quae omnia omnino pugnare cum peripathetica caelestium corporum immutabilitate, et incorruptibilitate nemo est, qui pleno ore non fateatur.

Não se veja indício de originalidade neste gesto de repúdio, porque antes de Galileu já se haviam tornado inadmissíveis o princípio da invariabilidade e da incorruptibilidade dos céus e o da existência de esferas celestes, sobretudo após as famosas observações de Tycho Brahe relativas à Stella noua de 1572, ao cometa de 1577 e ao planeta Marte.

Borri foi apenas mero introdutor de uma opinião já assaz divulgada e admitida em meios puramente científicos, mas, não obstante, o seu gesto teve certa galhardia intelectual, mormente se pensarmos na sólida e ainda vigorosa correlação que de longa data se havia estabelecido entre a teologia e a cosmologia de Aristóteles.

Foi por esta razão, sem dúvida, que ele sentiu o dever de justificar amplamente, mediante noventa e cinco densas páginas da Collecut, a “noua astronomia” no respeitante à corruptibilidade e à matéria do Céu, como foi ainda por ela encarada sob outro ponto de vista, que foi mais breve no exame da segunda implicação do Sidereus Nuntius, a saber, o movimento da Terra. E compreende-se.

É que, ao contrário da teoria da corruptibilidade do céu, cujos fundamentos se podiam discutir livremente, a conceção da Terra como centro imóvel do Universo tinha pelo seu lado a tradição e, o que é mais, a autoridade da Congregação do índex, que em 1616 sentenciaria contra a conceção copernicana, quod Sol sit centrum mundi et Terra moueatur. Como sacerdote e como mestre de Astronomia, Borri acatou este ueredictum, pois declara que a explicação de Copérnico é inconciliável com a “sacra página” e com a “física”. Reconhecendo, porém, a veracidade dos novos descobrimentos astronómicos, poderia Borri admitir integralmente a velha construção da máquina celeste, ou não lhe cumpria antes procurar uma nova teoria que “salvasse as aparências”, seguindo o conselho que Clávio dera em 1611, um ano antes de morrer, e ao qual já aludimos? Foi este caminho, o único lógico, que Borri seguiu, sem aliás despender grandes canseiras, aberto como estava pela ponte de ligação que Tycho Brahe estabelecera em 1588 (?), no De mundi aetherei recentioribus phoenomenis, divulgado plenamente em 1610, entre Ptolomeu e Copérnico, admitindo com este que os cinco planetas então conhecidos giravam em torno do Sol e com aquele que a Terra está imóvel no centro do Universo, sendo em torno dela que giram o Sol e a Lua.

In apparentiis et obseruationibus huius temporis Tychonen Brahe esse sequendum, é a proposição que Borri estabelece logo no início da segunda parte da Collecta consagrada à “nova astronomia” e, consequentemente, é como sequaz do famoso astrónomo dinamarquês que se apresenta e se defende, a um tempo, das incongruências da conceção ptolomaica e das dificuldades de alcance teológico e de ordem dinâmica, que não geométrica, da conceção copernicana.

O seu exemplo frutificou, pois não há a bem dizer livro ou tese de re cosmologica impressa numa oficina portuguesa até meados do século XVIII, mesmo depois de Bento XIV ter levantado do Index, em 1758, o De reuolutiordbus orbium coelestium, que não exponha e defenda o “systhema tychonico” como o mais compatível com as exigências da crença e as circunstâncias de facto —, sem aliás ninguém haver notado, em Portugal como no estrangeiro, segundo cremos, que a conceção de Tycho Brahe se pode filiar, pelo menos em parte, como esperamos mostrar noutra oportunidade, nos raciocínios concisos e densos com que Pedro Nuns criticou o sistema copernicano.

Mediante este “compromisso”, a luta gigantesca de Galileu pela vitória do sistema de Copérnico não teve brado profundo na nossa terra, que por largo tempo continuou hesitante entre as considerações teológicas e o comodismo do espírito eclético.

Pelo que até agora apurámos, são estes os factos capitais que relacionam Galileu com Portugal, durante a sua vida.     

Em rigor, todos se passam à margem das suas explicações cosmológicas, físicas e mecânicas, isto é, de tudo o que verdadeiramente tornou imortal o nome do grande sábio.       

Meditemos na lição que este silêncio encerra, e honremos na memória de Galileu, glória da Itália imortal e do génio latino, o amor da Ciência, a perseverança no trabalho, o escrúpulo moral e intelectual da exatidão, e a alacridade e o risco das ideias.  


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