Uriel da Costa

Uriel da Costa, cujo espírito viveu angustiosamente duas das mais profundas atitudes religiosas, para, enfim, encontrar na renúncia à vida o termo da sua odisseia mística, está hoje na ordem do dia entre os estudiosos do espírito europeu do século XVII; e não nos surpreenderemos se o próximo congresso de filosofia (Harvard, Setembro [de 1926]), examinando as últimas investigações sobre Espinoza, consagrar ao seu caso, que ultrapassa a simples tragédia interior dum homem, novas observações. O perturbante testamento do Espelho da vida humana, a “cissura da consciência”, que o Sr. Cari Gebhardt elevou penetrantemente à categoria de característica psicológica do marrano, o exame da possível influência de Uriel no hoje, para honra dos nossos tempos, Benedictus Espinosa, impõem-se como temas graves, pelo seu interesse intelectual, valor humano e intensa claridade que derramam na compreensão da alma de Israel sephardim, dilacerada pela iníqua conversão oficial. Por isso talvez não fosse por casualidade, mas para sugestão, à bon entendeur..., da própria Weltanschaung, que a insigne e inolvidável Senhora D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos abriu o 1.º fascículo da Lusitânia com um resumo e paralelo crítico das suas notas relativas à vida e obras de Uriel da Costa com Die Schriften des U. da Costa do Sr. Carl Gebhardt. Pela índole destes trabalhos, de tão sábia urdidura e escorridos do prelo quase simultaneamente, a personalidade e a obra do livre-pensador não conquistavam o que se chama o “grande pública”.

É esta conquista que hoje anunciamos aos leitores da Lusitânia, tanto mais para acentuar quanto é certo que os Srs. Duff e Kann, na parca, mas fundamental bibliografia do seu formoso ensaio, citam apenas os artigos de Seeligmann (Zeits. f. h. Bib., 1911) e Porges (Monatsch. f. G. u. W. d. Jud., 1918), o livro do Sr. Gebhardt e os dois estudos de D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos — o da Rev. da Univ. de Coimbra (vol. 8) e o da Lusitânia (I). Ajuizando estes trabalhos como “des merveilles de conscience et de vigueur scientifique”, declaram: “Nous regrettons de n'avoir pu nous servir, par suite du retard matériel, des oeuvres de Madame Carolina Michaëlis de Vasconcellos. Dans notre pillage nous ne lui avons pris que la reproduction de la signature de Gabriel da Costa, publiée pour la première fois”, o que foi lamentável, porque uma das maiores contribuições da insigne professora ter-lhes-ia permitido dissecar mais objetivamente a primeira crise na fé católica do inquieto Gabriel.

O ensaio dos Srs. Duff e Kaan, admiravelmente escrito num elevado e penetrante espírito de simpatia, não tem “pretensões científicas”; mas é um trabalho digno. As suas 140 páginas são ocupadas pela tradução do Exemplar humanx vitx e por uma introdução, que se desenvolve nos seguintes capítulos: I - O sangue de Uriel da Costa; II - A vida de Uriel da Costa; III - O pensamento de Uriel da Costa, o qual se desdobra em três secções: a) Uriel da Costa e Espinosa; b) Uriel da Costa e o estoicismo; c) A religião e a natureza.

O primeiro capítulo é um breve conspecto sobre as perseguições dos judeus em Portugal, sob D. João II e D. Manuel. De notável encontramos uma análise da consciência dos marranos, ou antes, cripto-judeus, da qual o Sr. Gebhardt nos deu uma fecunda e afortunada interpretação e o Sr. Samuel Schwarz recentemente documentou, com atualíssimos testemunhos, os quais fortemente iluminam os mistérios da consciência hebraica sob a Inquisição. É a luta contra a cissura da consciência a ideia-guia deste capítulo — luta formidável, ora viscosamente hipócrita, ora valorosamente indómita, mas sempre trágica e que torna pelo menos compreensível o vitupério com que Israel recorda e recordará o Venturoso da história pátria, como o Tito dos tempos modernos.

É ainda o conceito de cissura da consciência, formulado pelo Sr. Gebhardt, que orienta os autores no 2.° capítulo, no qual penetrantemente analisam as crises religiosas de Gabriel, e, convertido à religião dos seus avós, a sua posição moral, “não-judeu entre os judeus, ou então o único judeu entre pessoas que o não eram” (p. 44). Transparece em todo este capítulo a influência do livro do Sr. Carl Gebhardt; mas se nada encontramos de novo, no ponto de vista da extensão dos conhecimentos, há nele a meditação inteligente dos factos. Os autores desconheceram as substanciais páginas que a Senhora D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos consagrou à escolaridade de Gabriel da Costa; mas, sem embargo, aprofundando uma observação do Sr. Gebhardt, formulam um delicado problema, que a um português cumpre elucidar. A grande piedade cristã de Gabriel, assim como as suas dúvidas, não seriam o resultado da “atmosfera jesuítica” da Universidade de Coimbra? “Nas suas ilusões sobre as construções da razão não entraria, em certa medida, a influência tomista?” (pp. 4243). Os Srs. Duff e Kaan observam apenas que “foi o problema da salvação, da condenação eterna e da redenção, que o afastou do cristianismo. Foi um problema católico que lhe tirou a fé católica”. Segundo D. Carolina Michaëlis, “para inquietar e consumir em dor e tristeza um espírito religiosamente sensível em excesso, como o do Cismático Portuense, chegavam... os simples parágrafos do Catecismo Romano que contêm a definição de Purgatório e Inferno. Est purgatorium ignis...”. Mas se este juízo, tão penetrante, é já um começo de resposta, para o caso negativa, a realidade é por demais viva, consentindo, pelo menos, o sedutor prazer de arriscar hipóteses. Não deverá, porventura, procurar-se o primeiro rebate da voz do sangue no ambiente coimbrão?

Sabe-se como Coimbra, no período escolar de Uriel, viveu agitadamente, demagogicamente, o que se tem chamado “a pureza nacional”, com pesar de todas as almas delicadas.

O processo do Dr. António Homem denuncia-nos a existência de cripto-judeus em Coimbra, e quanto era viva a trágica memória do frade Diogo de Assunção (t 3 de Agosto de 1603), talvez, antes de Costa, o caso mais típico do marrano na luta pela unidade da consciência e pacificação pelo regresso a Israel. A intuição dos Srs. Duff e Kann reclama uma análise atenta, porque não é simples divagação currente calamo a possível influência do “ensino medievalesco” de Coimbra na conceção que Uriel formou de Deus, da moral e da religião natural, “de inspiração finalista” (p. 76). O último capítulo, sobre o pensamento de Uriel, é, pela lúcida exposição e flexuosa elegância das hipóteses, um conjunto de páginas que os estudiosos da filosofia lerão com gosto.

Certas afinidades biográficas, atitudes próximas contra as pretensões dos rabinos, a comunidade na defesa do pensar livre, o parentesco dalguns juízos e exemplos do Tratado Teológico-Político e do Espelho da vida humana tinham de há muito sugerido uma aproximação entre os dois emigrados da sinagoga de Amsterdão, Espinoza e Uriel. Durante largos anos fora este parentesco que tornara lembrado o nome do atormentado portuense, e ao qual sacrificaram historiadores da filosofia, literatos e até um pintor, pelo menos; mas os Srs. Duff e Kaan não se abandonaram a estas fáceis coincidências verbais e externas, e, seguindo o juízo do Sr. Gebhardt, mostram duma forma sugestiva que Uriel não é da pátria intelectual do filósofo da Ética.

Compendiam as passagens mais frisantes do paralelo; mas acentuam o abismo profundo, moral e intelectual, que separa os dois amantes da libertas philosophandi e da religião adogmática e como contrasta a serenidade e beatitude de Espinoza, possuído do amor Dei intellectualis, com a combatividade, não isenta de ódios, de Uriel.


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