Uriel da Costa

Entre os dois, há a barreira que separa “um filósofo dum místico sem verdadeira filosofia” (p. 69), ou, para empregar a nítida expressão do Sr. Gebhardt, “Espinoza começa onde Une! acaba”. Neste, nada que sugira o ens absolute indeterminatam, a natura naturans do filósofo. A sua religião é ainda antropomórfica. Entre Deus e a natureza há a relação do criador para a criatura, e a mesma razão finalista e providencial ordena o mundo físico e o mundo moral. Desta harmonia e perfeição do universo, Uriel concluirá, novo saduceu, pela negação da imortalidade. Implicando a imortalidade a possibilidade da condenação eterna, esse possível não é “um princípio de desordem incompatível com a bondade divina e harmonia da natureza?” (p. 83). Os Srs. Duff e Kaan reconhecem nesta atitude a razão estoica de Marco Aurélio, de Epicteto, e na própria biografia do autor do Exame das Tradições Farisaicas encontram uma prova do estoicismo: “se Costa, nos últimos tempos da sua vida, pela via estóica encontrou um derivativo para certas angústias e problemas, não há o direito de supor que o mistério da sua morte trágica se acha, em certo sentido, esclarecido? Este suicídio que precede e anuncia o Exemplar, simultaneamente defesa e libelo, este suicídio que é paixão e furor, não foi, num momento de meditação, sugerido e justificado pela moral estoica?

“Um estoico tê-lo-ia condenado, podê-lo-ia condenar em nome da doutrina? Um Séneca, um Catão não atingem o tresvario de Costa.

Mas, não morrem, como ele, pelos mesmos motivos? Renunciam à vida, quando lhes foge tudo o que lhes constituía razão de viver, quando lhes é impossível praticar a virtude numa sociedade da qual só a morte os pode separar” (p. 83).

Esta aproximação, que é a contribuição original dos autores, abre novas perspetivas à íntima compreensão da tragédia do livre-pensador. É certo que Uriel não cita nenhum estoico; mas, pode esquecer-se que o senequismo informou a conceção da vida peninsular no século XVII duma forma tão intensa que ninguém, a bem dizer, se lhe furtou? Não se vira já, em pleno século XV, o seco exegeta Isaac Abarbanel invocar Séneca numa epístola consolatória ao conde de Odemira — epístola esta inédita e contida num dos códices alcobacenses? Esta fonte ideológica, assim como a explicação da primeira crise de Gabriel-Uriel pela atmosfera intelectual da Universidade de Coimbra — à qual acrescentamos o próprio ambiente da cidade —, constituem as mais fecundas sugestões deste ensaio, cuja página final é um penetrante juízo do valor de Uriel da Costa:

“A desordem que subsiste em toda a vida do autor do Exemplar, e da qual Pascal triunfou, resulta da presença no seu pensamento de duas formas religiosas, as mais inconciliáveis. Não é para surpreender que não pudesse vencer a contradição. Mas esta complexidade e esta multiplicidade num só homem, bastam para nos causar admiração. Só o desassossego da sua raça, tanto mais profundo e tenaz quanto é inconsciente, explica esta diversidade, esta desordem, e que Costa, sem ser grande filósofo, nem grande teólogo, pudesse ter vivido, tão profundamente, com tanta paixão, as duas formas pelas quais a humanidade interpretou o seu destino, e que tivesse conhecido as duas vias essenciais, por uma das quais ela tenta colocar-se, com plena lucidez, em presença de si própria, e pela outra ousa julgar o seu nada pela presença infinita, esmagadora de Deus”.

Nesta breve notícia pretendemos apenas anunciar que pelo ensaio dos Srs. Duff e Kaan o “caso de Uriel da Costa” saíra do círculo restrito dos historiadores do espinozismo, de Israel e da mentalidade europeia do século XVII, embora, de passagem, fizéssemos algumas ligeiras observações. É possível que o assunto nos tente um dia. Uriel é sem dúvida um déraciné; mas pode legitimamente pensar-se — e a crítica feita por Seeligmann e Gebhardt é seguida pelos Srs. Duff e Kaan — que o Exemplar, como o Exame, as Propostas e o Da mortalidade da alma, foi escrito e pensado em português; e que esta perturbante mensagem dirigida à posteridade valeu ao convicto afirmador da mortalidade da alma uma discreta imortalidade na memória dos homens — talvez a única falaz e infantil, talvez a única possível enquanto rolar este “fragmento da Atlântida”, e a humanidade incubar o gérmen fecundo da insatisfação, que a Grécia nos insinuou e tem feito toda a superioridade do europeu.

Coimbra, Abril de 1926


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