2. Santo Antero

Não quero apurar neste momento se o tesouro das ideias que lhe guiaram a ação de reformador literário e social está ou não depreciado, nem se alguns dos seus juízos sobre o nosso país brotaram do equívoco de ele verberar o que Portugal não era, ao contrário de nós que amamos Portugal como ele é, com os seus defeitos e qualidades; desejo apenas acentuar a dignidade com que entrou nestas lutas, de que é exemplo singularíssimo e sem par entre nós a sua admissão como tipógrafo numa oficina de Paris. Ao contrário de Michelet, que de tipógrafo se fez escritor, Antero de escritor fez-se tipógrafo, sem dúvida alguma para se revestir da autoridade moral que lhe permitisse dizer como Michelet, na dedicatória do Peuple a Edgar Quinet: “le vrai nom de l'homme moderne, celui de travailleur, je le mérite en plus d'un sens”. Essa autoridade logrou-a, mas logrou também a primeira grande desilusão, por cuja fenda irromperam poucos anos depois a dúvida, a agonia e a laceração da consciência, presa do desespero moral e metafísico.

Foi esta a derradeira luta de Antera, cujo dramatismo e expressão não têm par na nossa literatura, e uma vez mais é um valor moral, a bondade, que lhe rasgou o caminho da libertação e nos desvenda o sentimento profundo das derradeiras poesias dos Sonetos, o seu testamento poético, e do ideário das Tendências da filosofia, o SCU testamento filosófico.

Pela diversidade da atuação social e do contato com meios diferentes e quase impermeáveis, Antero conheceu, como raros escritores portugueses, o homem e a realidade humana. Conheceu-os nas nobres ambições literárias e na mesquinhez invejosa dos plumitivos, no recato humilde da caridade e no clamor arrebatado da política, no suor das oficinas e no desperdício dos possidentes, na miséria dos hospitais e nos lances da história, que ensinam a conhecer o reverso do poderio. De tão vasta e tão variada experiência, socorrida pelo ardor de diferentes leituras, e meditada pelo vigor de uma inteligência robustíssima, o espírito de Antera logrou a maturidade e a saturação de um pensador, que nos arrebata pela delicadeza com que desterra a improvisação, pela densidade dos juízos e, sobretudo, pela arte com que incorpora os pensamentos na subtil região em que as coisas adquirem sentido, hierarquia e valor.

Antero nunca escreveu por casualidade nem por capricho, senão porque havia pensado e algo linha a dizer. Por isso a sua obra, para além da projeção moral e estética, tem uma profunda significação histórico-filosófica: pela sua ação sensibilizadora pensaram-se pensamentos e problemas que jamais se haviam pensado entre nós, porque a sua palavra estava impregnada de sentido e de duração.

Antera recatou sempre o fundo mais íntimo do seu espírito, talvez pela suprema honradez do pensador; creio, no entanto, que desde o alvorecer da consciência intuiu como verdade suprema os pensamentos cuja forma definitiva esculpiu nos seguintes períodos das Tendências da filosofia na segunda metade do século XIX:

“Se a perfeita virtude, a renúncia a toda o egoísmo, define completamente a liberdade, e se a liberdade é a aspiração secreta das coisas e o fim último do Universo, concluamos que a santidade é o termo de toda a evolução, e que o universo não existe nem se move senão para chegar a este supremo resultado. O drama do ser termina na libertação final pelo bem”.

Se nada mais soubéssemos da sua vida nem dos seus pensamentos, bastaria esta apologia da renúncia para que Antero fosse para todos nós, mesma os que pensam que a beatitude é alegria e posse imperturbável de espírito compreensivo, o que foi para os que o conheceram e amaram: Santo Antero.   

Filósofo da liberdade, Antero foi sobretudo um homem que obedeceu aos livres ditames da consciência moral, e não uma razão deambulante ou um artista de rimas; por isso vos falei apenas, Senhores Estudantes, nos sentimentos morais indispensáveis para se penetrar na obra anteriana, da qual, aliás, não separei o homem que a sentiu e escreveu.        

Fi-lo meditadamente, porque uma vida como a de Antero, excelsa pela bondade e pelo culto da justiça e do ideal, sob o ponto de vista da cultura e da dignidade humana, vale tanto ou mais que a genialidade de uma explicação científica ou a beleza de uma obra de arte.


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