1. As ciências e a sabedoria

b) Relações da ciência e da sabedoria.

Analisando a situação contemporânea, Marcel Reymond apontou as causas de “O divórcio atual das ciências e da sabedoria”, notando com acerto que “o que faz com que a sabedoria seja uma coisa mais difícil e precária que o saber é o facto dela não poder emanar senão da personalidade integral, do instinto como do pensamento (...) comportando, mais do que a ciência, um número muito mais considerável de elementos incoordenáveis, segundo a expressão do filósofo Jean-Jacques Gourd”.

Julien Benda opôs à conceção da “ciência essencialmente moralizadora”, sustentada por Langevin (“[...] o sábio, fiel ao espírito da ciência, deve necessariamente fazer obra humanitária, orientada para a paz e para a justiça”), a conceção seguinte: “a moralidade da ciência não está nos seus resultados, os quais podem servir a imoralidade; está no seu método, que nos obriga à constante vigilância de nós mesmos, à constante renúncia a erros a que temos afeição, ao contínuo combate aos nossos arrebatamentos passionais”.

 “As sabedorias do sábio e a dialética” constitui o tema tratado por Gaston Isaye, que indicou as seguintes: o amor da verdade, a crítica dos fundamentos do saber, que é coisa distinta das ciências, o acabamento do sabido, dado que “a sabedoria do sábio comportará sempre uma constatação de ignorância e um desejo de a remediar”. Daqui, a necessidade da “colaboração da ciência e da metafísica, um remate que constituirá a derradeira sabedoria do sábio”.

Robert Clermond ocupou-se das “Assunções possíveis de uma metafísica da pessoa em face das ciências modernas”; distinguindo a sabedoria da ciência, o autor pensa que “a verdadeira sabedoria existe na comunhão do espírito e ultrapassa essencialmente os dados objetivos colhidos ao longo da nossa experiência fenomenal”, pelo que afirma a “convicção da necessidade de instaurar uma filosofia homocêntrica em lugar de uma filosofia geocêntrica à maneira de Aristóteles e dos naturalistas”, pois o objeto da filosofia consiste no conhecimento do homem como realidade espiritual, que é coisa diversa da experiência do sábio.

“A questão da objetividade na sabedoria e as ciências” foi versada por Arnold Reymond. Partindo da noção de que “a sabedoria implica sempre uma linha de conduta razoável, o que de modo algum exclui a audácia quando as circunstâncias o exigem”, o que estabelece uma relação evidente entre sabedoria e ciências, porque, para agir com conhecimento de causa, cumpre estar instruído acerca do mundo físico e das suas leis, do comportamento dos homens e dos deuses, assim como do das plantas e dos animais”, e por outro lado, considerando que a sabedoria tem sido frequentemente considerada antagónica da filosofia e da ciência, o ilustre mestre de Lausana formulou o problema de saber se a sabedoria tem ou não uma objetividade própria. Para responder, fez uma excursão histórica, dos gregos ao nosso tempo, na qual se acusa o saber do historiador das ciências e o sentido de síntese do filósofo. Em conclusão, poderá dizer-se que “a sabedoria mais objetiva será a que mostre pela persuasão que, praticada efetivamente, permita a todo o homem realizar a sua verdadeira natureza e de ao mesmo tempo se integrar na sociedade humana”.

Para Georges Bastide (“A função moral da ciência”), “a sabedoria comporta necessariamente em si as qualidades de clareza, de precisão analítica, de relação unificante e de justeza compreensiva, que se não podem exercer senão na e pela função de ciência”; e, inversamente, Georges Mottier (“Consciência sem ciência é falta de sapiência”), entende que “para viver sagesmente, o homem deve aumentar em si a intensidade da consciência capaz de descobrir que a realidade mais real reside menos nos factos, nas formas e nas capacidades que parecem circunscrever ou ultrapassar o eu, do que na inesgotável aspiração geradora pela qual se afirma o próprio eu”.

c) Sabedoria e valor.

Tema implícito na construção de várias comunicações foi, não obstante, muito menos versado do que os anteriores. Consideraram-no em especial Jean Pucelle e Eugène Dupréel. Jean Pucelle (“A descoberta do valor como fonte de uma sabedoria”), desenvolvendo a noção de que “a sabedoria cuja indagação a filosofia professa não é mais do que a descoberta do que dá valor à vida”, pois qualquer que seja a moral que se professe, “uma sabedoria apresenta-se sempre como um certo uso da nossa liberdade, que é um poder de investir e de transmutar valores”, julgou que a sabedoria é “necessariamente investida, seriação e convergência de valores”. Para Eugène Dupréel (“A ideia de sabedoria perante a pluralidade dos valores”) os valores “sendo múltiplos e não exatamente solidários ou convergentes, cada um deles pode oferecer-se à nossa escolha, à nossa preferência e à nossa dedicação”; consequentemente “não existe a sabedoria” mas sim “sabedorias”, tantas quantas os “valores suficientemente suscetíveis de serem erigidos em guia geral de uma conduta”. Assim considerada, a noção de sabedoria equivale “à de uma maneira de conduta sistemática dirigida para o serviço de um valor que se pretende incondicional ou absoluto”; e além disto, “a pluralidade irredutível dos valores impede que a filosofia seja representada não só como indagação de uma sabedoria, una e viável para qualquer homem, mas ainda como progressão segura para urna verdade que se constrói indefinidamente sem nunca perder seja o que for nem nunca dever nada a não ser somente à evidência”.

Estas brevíssimas e muito concisas referências são suficientes para se avaliar a importância do congresso de Bordéus. Não concorreram à reunião, cuja comissão organizadora foi constituída pelos professores René Lacroze, Joseph Moreau e E. Morot-Sir, alguns dos melhores nomes do pensamento francês contemporâneo e também se não nota nas páginas impressas a vivacidade de correntes opostas. Não obstante, as comunicações apresentadas mostram, sob o ponto de vista da quantidade, a expansão dos interesses filosóficos para além dos meios por assim dizer profissionais, e sob o ponto de vista da qualidade, a tendência franca para considerar que o melhoramento da situação humana, individual e social, não será a consequência única e necessária da eficácia das técnicas de exclusiva procedência científica. Graças ao maquinismo, o homem de hoje tem a sensação de ser uma força transformadora e criadora; mas porque esta sensação se tornou terrivelmente perigosa para a existência de cada um e para a vida de todos, também nunca se tornou tão necessária como hoje a reflexão demonstrativa de que o melhoramento social tem de seguir os caminhos confluentes da ciência e da consciência, ou sejam os da eficácia prática ao serviço da sabedoria normativa e constituinte.

O congresso de Bordéus assinala um esforço meritório no sentido do esclarecimento desta verdade de sempre à luz da situação contemporânea, tão cheia de apreensões para o florescimento de uma vida do espírito, além de ser um testemunho significativo da vitalidade do pensamento filosófico dos povos que se exprimem pelo idioma francês.


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