1. Liberalismo e democracia ou glosa de um juízo de Herculano

«O liberalismo achara a catadura da democracia pouco simpática», disse Herculano ao evocar na Voz do Profeta a ideologia política da emigração, e se me dão licença, ouço neste juízo uma melodia harmoniosa e encantadora, que apazigua os meus ouvidos da cegarrega daquela cantiga do «Liberalismo já lá vai, deu a alma ao Criador...».

Dar-se-á o caso do liberalismo e democracia serem coisas diferentes?

Pois está claro que são, e tão diferentes que se pode ser muito liberal na conceção e no exercício do poder e nada democrata, e democrata cem por cento e absolutamente antiliberal.

A Atenas do tempo de Sócrates, por exemplo, era uma democracia pura, cega, e mais do que cega hostil ao liberalismo, e nos nossos dias, Staline e Hitler atingiram o poder democraticamente e abominam e perseguem o liberalismo; pelo contrário, Herculano, na ordem dos princípios, e a maioria dos grandes políticos do constitucionalismo na ordem da ação, foram liberais, pouco ou nada simpatizantes com a democracia.

É que a democracia e o liberalismo são respostas diversas a quesitos diversos da consciência política, e muito embora a evolução política dos países civilizados as tenha conjugado numa síntese, expressa comummente nas constituições, na origem são autónomas e podem ser dissociadas e empregues uma contra a outra. A confusão e a tragédia política do nosso tempo não resultam justamente desta dissociação e oposição? Mas não divaguemos...

Em face do Estado, e mais concretamente do homem ou dos homens que exercem o poder público, impondo normas, condicionando, coagindo ou exortando a atividade dos indivíduos, pode formular-se teoricamente um conjunto de quesitos, designadamente estes dois: donde procede o poder de mandar? Quais são os limites do poder de mandar?

Como as perguntas são diversas, as respostas são naturalmente diferentes, e assim, à primeira pergunta responde a democracia, e à segunda o liberalismo.

O democrata diz que o poder reside originariamente e a cada instante no povo, isto é, na coletividade dos cidadãos. Os seus opositores são logicamente os aristocratas, isto é, os que, no sentido largo da palavra, situam numa classe de privilegiados a fonte de poder, e o monarca absoluto, de que foi teórico entre nós o Marquês de Pombal, quando escrevia que «o supremo poder reside na pessoa de um só homem» e os povos não tinham «contra os reis mais recurso que o sofrimento».

A democracia é, pois, um sistema político indicativo de quem deve mandar; mas quem manda, até onde tem o poder de mandar?

É a esta pergunta, inteiramente diferente, que responde o liberalismo, dizendo que quem quer que exerça o poder, seja um democrata, seja um privilegiado, seja um monarca, esbarra perante uns tantos direitos das pessoas.

O Estado liberal, que, insistindo, tanto pode ser monárquico, como republicano, é um Estado limitado, isto é, um sistema de entraves ao poder do Estado. Esses entraves são comummente os chamados direitos fundamentais — liberdade pessoal, de opinião, de consciência, de contrato, económica, etc., os quais, como é óbvio, estabelecem um dualismo entre Estado e Sociedade, Política e Economia, quer dizer, uma zona de interesses que é simultaneamente estatal e política, e outra zona que é social e apolítica.

Nesta zona, o Estado não intervém, é teoricamente neutral, e se intervém cura apenas de reprimir abusos ou restabelecer as condições do livre exercício das atividades individuais.

Como se vê, o liberalismo é uma conceção complexa, que engloba direitos diretamente procedentes do sentimento da dignidade e do valor da pessoa humana e direitos resultantes de uma fase histórica da propriedade e da atividade económica. Quando ouve a cantiga do «Liberalismo já lá vai...» entende o democrata que o governante, eleito democratissimamente por sufrágio direto e universal, tem o direito de nos impor a crença religiosa que ele quiser, de nos coagir a pensar o que ele entender, de nos determinar a profissão que seguiremos, de regular toda a nossa vida como se fosse a peça de um relógio? Pois quem assim pensa que lhe preste, e se satisfaça em ver nas formigas e noutros insetos o espelho da vida que lhe convém.

A democracia foi uma conquista grega, e desde então persistiu sempre em numerosíssimas cabeças, sem esquecer as de, por vezes resolutos, teólogos cristãos; o liberalismo, pelo contrário, é uma conquista moderna, dos povos civilizados, e combatê-lo é no íntimo, destruir a civilização e rasgar a mensagem eterna de Jesus — a dignidade da pessoa humana.

Há na neutralidade do liberalismo, como dizia, salvo erro, Oliveira Martins, a liberdade de morrer de fome e na zona que o século XIX considerou apolítica, isto é, a esfera económica, um dualismo que a justiça e o interesse público aconselham que cesse, tornando-a política e estatizada? Quer dizer, em vez da economia livre, a economia orientada ou dirigida?

Se assim é, que se não tome a parte pelo todo, se não confunda o revestimento com a essência, e se não façam calar aquelas vozes que querem que a economia da prosperidade do século XIX se não volva no nosso século em economia da miséria.


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