I. O ideal homérico como ponto de partida dos ideais helénicos

Tirante a religião, o direito e a música, é na Grécia que se encontram as raízes das formas superiores da atividade do espírito, que caracterizam a nossa civilização. Foi na Grécia antiga que, verdadeiramente, nasceu a reflexão crítica acerca do mundo e da vida, em condições a que não sem propriedade Renan chamou «o milagre grego», e se exprimiu por uma série de conceções de estrutura racional em contraste com o imobilismo das civilizações orientais, e que, aliás, se vazaram em variados e originais moldes literários — o poema, a tragédia, a comédia, o diálogo, a dissertação filosófica, o tratado científico, a biografia, o tratado histórico, o ensaio, o discurso, etc..

Nas civilizações orientais dominaram a uniformidade e a imobilidade; na civilização helénica, pelo contrário, dão-se a variação e o desenvolvimento das instituições, dos métodos e dos ideais e planos educativos, que vão desde a formação primordial do homem de ação e cavalheiresco, dos poemas homéricos, até à educação enciclopédica e formal da época helenística.

A educação oriental conduzia à anulação da personalidade; a educação grega, pelo contrário, embora o indivíduo vivesse fortemente subordinado ao Estado, suscitou, especialmente em Atenas, o desenvolvimento da personalidade, da iniciativa individual e do pensamento autónomo.

No Oriente, as tradições impõem-se dominadora e absorventemente; na Grécia, embora as tradições persistam, surgem espíritos livres e criadores, dos mais altos e estimulantes que a humanidade tem conhecido, como Sócrates, Platão e Aristóteles, que ao real vivido ou configurado opõem o ideal da Ciência fundado na razão lógica e universalmente válido.

Tanto basta para mostrar que é do estudo da civilização grega que cumpre partir, pois é nela que, em resumo, pela primeira vez se realiza o conceito da formação da personalidade e surge um ideal de cultura como património de homens livres e não somente privilégio de uma classe restrita de dominadores.

Sob o ponto de vista educacional, aliás como sob outros pontos de vista, cumpre distinguir na história helénica duas grandes organizações estatais, de significação muito diferente: Esparta e Atenas.

A marcha de uma e de outra foram diferentes, mas não se compreendem cabalmente sem o ponto de partida comum, que é dado pelo ideal ético e educativo subjacente aos poemas homéricos.

A Ilíada e a Odisseia, com efeito, para além da conceção e da realização estética, exprimem o ideal educativo do herói cavalheiresco, cortês, pundonoroso, hostil à má-fé e assente na areté, isto é, no valor viril que pelo triunfo se torna digno de ser honrado, e na kalokagathia, isto é, na conjugação da beleza e da virtude, entendida esta não propriamente no sentido atual mas no de plenitude da atividade. Com ser essencialmente ativo, o ideal heroico dos poemas homéricos nem por isso excluía os elementos de formação intelectual, pelo que se pode de algum modo dizer que Aquiles representa o homem de ação e Ulisses o homem cultivado, e que a coordenação destes dois ideais, ou seja a união do pensamento e da conduta se tornou característica da ulterior educação pós-socrática, quando o domínio de si próprio substituiu o heroísmo do guerreiro.

Hesíodo, posteriormente, no poema didático Trabalhos e dias, deu expressão ao ideal da vida do trabalhador, humilde, moderado, dedicado ao seu labor, que não considera castigo mas atividade necessária e digna.

Não se quebrantou, porém, na história helénica, a influência dos poemas homéricos, cujos mitos, lendas e relatos constituíram o texto das primeiras leituras e ministraram um tesoiro de ações exemplares e de modelos de conduta, não só para a juventude, que iniciava a formação literária, como para o próprio povo iletrado, que aprendia a lição dos heróis homéricos com as recitações dos rapsodos. Como disse Werner Jaeger, com Homero, o espírito pan-helénico atingiu a unidade da consciência nacional e o seu espírito imprimiu o seu vinco sobre toda a cultura grega posterior.

Como todos os ideais que se realizam, o ideal homérico sofreu alterações e, por assim dizer, a deslocação do seu centro de gravidade. Em si mesmo, inculcava o ideal, individualista e individualizado, da valentia e da honra, isto é, do herói individual, como que alheio à coletividade política a que pertence, e a evolução operou-se no sentido da constituição da polis, isto é, da cidade-Estado, fundada não na comunidade do sangue mas na lei, ou constituição, a cujo império estão sujeitos todos os membros que a constituem e em cuja vida pública participam em grau variável e com hierarquia política diversa. Daqui, a substituição do ideal individualista e aristocrático do guerreiro homérico pelo ideal da dedicação cívica à polis, portanto, pela supremacia do interesse da cidade-Estado e da vida política e urbana. Do guerreiro homérico ao triunfador das Olimpíadas e ao herói das Termópilas ou de Maratona há a sucessiva transformação do primitivo ideal homérico até atingir o orgulho e a dedicação sem limites à polis. As efetivações supremas e mais características desta evolução foram Esparta e Atenas — aquela, exprimindo o ideal aristocrático-militar dos Dórios, esta, a constituição da reflexão crítica, com tudo o que ela desentranha.


?>
Vamos corrigir esse problema