II. A Igreja e as novas bases do ensino

No descalabro do Império Romano, a Igreja foi a única força que logrou perseverar, tornando-se o centro polarizador da reorganização do novo rumo da cultura e a instauradora de instituições docentes, cujo ensino e cujo desenvolvimento culminam com a constituição das Universidades no século XIII. No decurso dos três séculos posteriores às invasões, não há testemunho de escolas públicas, com organização e planos análogos aos das escolas romanas. A extrema simplificação das funções estatais nos Estados saídos das invasões, que não contavam a educação como serviço público, e a raridade do ensino privado, doméstico ou não, ditaram, além de outros motivos, que a atividade docente tivesse como agentes, quase exclusivamente, monges e sacerdotes, e como locais, instituições religiosas ou eclesiásticas, designadamente mosteiros, sés episcopais e presbitérios.

Historicamente, as escolas que funcionam nos locais são continuação, e não propriamente inovação, mas a sua estrutura e finalidade não se compreendem sem a situação criada pelas invasões germânicas, sem o poderio e a ação unificadora da Igreja e sem as exigências da preparação de sacerdotes. A educação que ministraram, de raiz e de sentido transcendente, tem como paradigma a formação teocêntrica, à qual se subordinam todos os conhecimentos e valores.

O ideal educativo exprime-se, assim, como atividade ao serviço de uma cultura unitária e religiosa, para a qual aliás concorreram o uso do latim e a conversão dos povos bárbaros ao Cristianismo. Adotando o latim como língua sacra, a Igreja, com efeito, salvava da derrocada geral um instrumento do saber, que veio a ser condição dos ulteriores movimentos restauradores da cultura e da expressão e expansão do pensamento até ao século XVII, no qual começa, grosso modo, o emprego das línguas nacionais na literatura filosófica e científica. Demais, a conversão de Latinos, de Francos, de Irlandeses, de Anglo-saxões, de Godos e de Germanos, estabeleceu a unidade religiosa, mediante a qual foi sociologicamente possível a unidade cultural da respublica christiana da Idade Média, em cuja estruturação entrou também a tradição clássica, a par de outros factores e elementos integrantes.

Na ruína das instituições romanas e nas calamidades que a acompanharam e seguiram, expressivamente sintetizadas na frase de São Gregório Magno (t 604), «flagello barbaricae vastationis», os mosteiros foram, a um tempo, refúgio para as almas religiosas, núcleos de ação civilizadora, enquanto proprietários do solo e dado o regime de economia local, e centros de atividade docente e de recolhimento intelectual. Não sem razão, mormente sob o ponto de vista pedagógico e institucional, se designa frequentemente de monástico o período que medeia entre o final da Patrística, no século V, e o impulso reorganizador de Carlos Magno, no trânsito do século VIII para o IX.

Nestas três centúrias multiplicam-se os mosteiros no território da Europa Ocidental, sendo dos claustros que, em regra, saíram por então as figuras mais relevantes. Na Península Ibérica, parece ter sido em Huesca, no mosteiro de Asan, que o abade Vitorino (t 557) fundou a primeira escola, após as invasões; e ulteriormente, são particularmente importantes as fundações de Santo Isidoro de Sevilha (556? - 636) e de São Frutuoso, cujas Regras monásticas são significativas e cuja expansão foi prejudicada pela conquista do território peninsular, em 712, pelos árabes.

A Regra isidoriana (c. 600) prescrevia a existência nos mosteiros de um mestre santo, sábio, de idade madura e digno de ter o cuidado da instrução e da educação dos adolescentes; e a de São Frutuoso, determinava que o monge encarregado da educação fosse eleito pela comunidade e que no exercício do magistério não deixasse passar faltas sem a devida nota e corretivo, castigando com chibatadas os que roubassem, mentissem ou faltassem a juramentos.

As escolas monásticas, ou claustrais, radicam proximamente na Regra beneditina, que cedo irradiou pelo continente europeu em numerosas fundações, nas quais os monges, ao contrário do monaquismo oriental, dedicam, em geral, algumas horas do dia à cultura intelectual e à atividade docente. De início, tudo indica que o ensino consistia fundamentalmente no conhecimento das práticas litúrgicas e nos rudimentos das letras, ministrado por monges mais antigos, sem organização escolar, no sentido preciso do termo. Com o tempo, porém, o ensino, desenvolveu-se e organizou-se, por forma que, a despeito da estrutura unitária que manteve, cumpre distinguir duas atividades docentes no mesmo mosteiro: a escola interior e a escola exterior. As escolas internas eram destinadas a religiosos, a noviços e a oblatos, isto é, a meninos consagrados pela família à prática das obrigações da vida conventual; e as externas, fora dos muros do mosteiro, tinham como alunos, normalmente, rapazes que se destinavam ao sacerdócio secular.

O primeiro plano regular de estudos parece ter sido elementar — leitura, escrita, canto coral, rudimentos da língua latina, de cálculo numérico, de Lógica e de Retórica, e prática da ars dictaminis, isto é, exercícios de redação —, variando, naturalmente, a extensão e a intensidade do respetivo ensino com as possibilidades e as exigências docentes dos mestres. O ensino destas disciplinas, que pela origem como que estabelecem a mediação das escolas romanas de Gramática para a didática medieval das «artes», era propedêutico à lectio divina, expressão que abrange os textos dos ofícios litúrgicos e a leitura e compreensão da Sacra página, isto é, das escrituras; consequentemente, perdeu a feição informativa e formativa da expressão e do pensar do «orador homem-público» para se adaptar à formação eclesiástica e às exigências religiosas. As disciplinas científicas não entram no plano de estudos, que assenta exclusivamente na scientia litteralis, isto é, no conhecimento do latim e das noções de Retórica e de Lógica relativas aos recursos das palavras. O objetivo do ensino era a lectio divina, e o saber profano, considerado como auxiliar da leitura e da compreensão da Sacra página, consistia, fundamentalmente no conhecimento de palavras e de definições nominais, sem conexão direta com o exame dos factos da Natureza ou com a leitura dos textos clássicos.

O método em uso, essencialmente mnemónico, assentava na repetição. O estudo iniciava-se com a aprendizagem da leitura, a cujo mestre se chamava «calculador». Os alunos começavam por aprender a «calcular», isto é, a distinguir as letras gravadas em tabuinhas, que tinham o nome de «cálculos», e a formar com elas sílabas e palavras. Com a leitura, aprendiam de memória os Salmos, seguindo-se-lhe o estudo dos rudimentos do trívio e do quadrívio, mais sumários estes do que aqueles, e cujo desenvolvimento dependia do mestre e das respetivas possibilidades.

Em correlação com a escola, existia normalmente nos mosteiros uma livraria, constituída, em regra, por livros de uso nos ofícios litúrgicos, de meditação espiritual e de doutrinação teológica, e o «escritório», recanto destinado à cópia de manuscritos e a outros labores da pena, designadamente de compilação, de comento e de relato.

Os mosteiros femininos também exerceram atividade docente, embora menos extensamente do que os masculinos, pois a escola que instalavam era quase sempre, senão sempre, interior, reservada a noviças e a crianças. A Regra de São Cesário de Arles, de 534, estabelece que as religiosas deviam aprender a ler e dedicar diariamente duas horas à leitura, copiar manuscritos e ministrar o ensino somente a crianças que tivessem feito seis ou sete anos de idade.


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