I. A Renascença e as novas condições do ensino

A organização escolar vigente na nossa época radica na Idade Média, principalmente no que respeita ao ensino universitário, mas a metodologia e os ideais educativos modernos remontam mais diretamente aos movimentos intelectuais e religiosos que enformaram a Europa do século XVI e se compreendem comummente sob a designação de Renascença.

No decurso dos séculos XIV e XV, as Universidades, de modo geral, esbateram, quando não apagaram, a feição internacional de instituições ao serviço da Respublica christiana, para adquirirem a de organismos ao serviço do Estado em que funcionam e sob cuja tutela, mais ou menos subordinante, são reformadas. Conservam, sem alterações profundas, a estrutura docente, mas as exigências políticas do processo constitutivo da unidade e da soberania dos Estados, polarizadas na Realeza, atingiu vitalmente o internacionalismo e o unitarismo da cultura medieval, suscitando a nacionalização das atividades intelectuais e formativas.

A diretriz nacional, no plano da atividade intelectual e docente, não empeceu a penetração do espírito individual na obra de criação artística e de investigação científica, nem tão-pouco a constituição de uma mentalidade cosmopolita de novo estilo, a Respublica litterarum, formada por letrados vinculados intelectualmente entre si pelo culto dos valores estéticos da Antiguidade, e a estruturação do ensino em função de novos ideais formativos, condizentes com o novo teor e sentidos da cultura.

Para avaliar das novas condições do trabalho intelectual basta reparar na cronologia das primeiras edições, latinas ou gregas, de autores antigos, designadamente as edições de alcance prático, de Plínio (1469), Varrão (1471), Manílio (1472), de Vitrúvio e de Vegécio (1486-1487); as de alcance científico, de Euclides (1482), de Ptolomeu (1482), de Dioscórides (1499), de Polux (1502), de Estrabão (1516) e das obras de Hipócrates e de Galeno, várias vezes impressas, em grego e latim, no século XVI; e de alcance filosófico, como as obras completas, em grego e latim, de Aristóteles e de Platão.

Analogamente, é também de per si expressiva a contemporaneidade de acontecimentos, como a invenção da imprensa, que modificou profundamente as condições da transmissão dos conhecimentos e da respetiva divulgação; os descobrimentos geográficos, que corrigiram conceções estabelecidas, alargaram o âmbito dos conhecimentos, suscitaram problemas insuspeitados e dilataram a atividade comercial e a ação civilizadora; e a introdução de técnicas, em união com novos conhecimentos científicos, designadamente de navegação, pela utilização da bússola, e de fortificação e combate, pelo emprego de armas de fogo, que impuseram à guerra a conjugação da ciência e da arte, com estrutura diversa da época da cavalaria.

No domínio das ideias, das crenças e dos sentimentos, foram profundas as mutações e as inovações, notadamente, a admiração entusiasta dos valores e das expressões estéticas da Antiguidade; o desenvolvimento do espírito crítico; o retorno ao naturalismo e o impulso do saber experimental, o surto do lirismo pessoal e a exigência crescente de mais sinceridade e de maior isenção da atividade intelectual; a combinação da erudição com a observação direta, característica da atividade renascente e da qual são em Portugal figuras representativas Pedro Nunes e Garcia de Orta; as controvérsias religiosas e a cisão, devida à Reforma protestante, da unidade religiosa da Respublica christiana; o fortalecimento do sentido nacionalista na política dos Estados; o desenvolvimento da burguesia e da atividade comercial; a valoração do capital numerário, o afã do lucro, o gosto do luxo e a ambição do bem-estar material, tornado mais intenso, extenso e diversificado.

Esta sumária indicação é de per si suficiente para mostrar a complexidade da Renascença, cujo conceito inicial se reportou a um estilo das belas-artes e ulteriormente se emprega para designar uma época, na totalidade das manifestações da vida do espírito e das atividades sociais.

A sua compreensão cabal exige, por isso, a correlação de diversos factores e de variados acontecimentos, mas sob o ponto de vista histórico educativo são três os acontecimentos que principalmente cumpre destacar: o Humanismo, a Reforma e a Contra-Reforma, e a isenção da mentalidade científica. Cada um deles deu ensejo a novo curso do espírito e da educação, desentranhando na sua desenvolução o aparecimento de novas conceções, de novos métodos pedagógicos, de novas agremiações da atividade intelectual e de novas instituições escolares, frequentadas, aliás, em número crescente por escolares leigos, oriundos de famílias burguesas e de tronco popular.

Assim, de modo geral, o Humanismo divorciou a sensibilidade e a mente dos valores estéticos vigentes na Idade Média, para as reportar e introduzir na visão total e autêntica da Antiguidade, em si mesma, isto é, sem a conformar às exigências doutrinais da Escolástica, introduziu novos elementos formativos e intensificou a secularização do magistério.

A Reforma e a Contra-Reforma afirmaram conceções pedagógicas próprias e diferentes, e trouxeram consigo a organização docente dos colégios, aliás relacionada também com o movimento humanista.

A isenção da mentalidade científica operou a ruína das explicações qualitativas e quididativas, de essências e virtualidades, alentando a investigação desinteressada e a conceção quantitativa e mecanicista da Natureza; promoveu o cultivo das ciências exatas; gerou a transformação das condições da vida prática; suscitou novos problemas e métodos pedagógicos e deu origem, inicialmente, à constituição de academias e de sociedades científicas, de estruturação e de finalidade diversas das Universidades, e, no prosseguimento da sua marcha, à organização do ensino científico e técnico.

Importa, pois, atentar separadamente nestes acontecimentos, tanto mais que cada um deles influiu de maneira singular no teor e na expressão dos ideais educativos.


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