A Conquista do Direito (a propósito da «Conquista do Direito na Sociedade Romana», do Dr. Artur Montenegro, Coimbra, 1934)

Sucessivamente, passam diante de nós os quadros das alterações económicas, da habitação, da indumentária, das refeições triviais e bródios, das ocupações do dia, das horas de desenfado, da urbanidade e dos divertimentos, do luxo e dos desregramentos, da agonia dos velhos deuses e do câmbio da religião em etiqueta, da adversa fortuna e por fim da vitória da filosofia grega e das formas e planos da nova educação. Páginas admiráveis, de apurado saber e gosto, onde o sábio às vezes emparceira com o artista, e sempre espelham a familiaridade com a literatura latina, que em grande parte acudiu ao manuseio e à meditação. Com a educação vigente, verbosa e mimalha, corrosiva do esforço e da qualidade, únicas forças educativas, quem era capaz de escrever páginas tão escrupulosas e concisas? Oh! já que mais não podemos, respeitemos esse longínquo século XIX, que soube ainda educar os homens no culto das coisas finas, e veneremos, com o autor, os que estimaram a beleza antiga, como Castilho, o tradutor incomparável.

Se não fora o severo plano do livro, se o ardor da concisão cedesse, aquém e além, ao frémito da imaginação, e a dialética ao excurso moralizante e filosófico, se ao modo indicativo da exposição acrescesse o optativo e houvesse cingido outras questões igualmente graves e candentes, talvez tivéssemos de saudar no Sr. A. Montenegro a associação da finura penetrante de Boissier à compreensão profunda de Von Ihering.

O autor, porém, modestamente para o seu saber, cuidou apenas em colher a flor da equidade e surpreender a Justiça na proteção do fraco contra a violência, o arbítrio e a ignávia. Por isso, num ritmo de pensamento idêntico ao da primeira parte, contenta-se em marcar as transformações do pátrio poder marital e da tutela das órfãs e viúvas, mostrando, com lúcida clareza, o que foi o igualamento das mulheres às privilegiadas pela maternidade e obtenção de direitos, como a capacidade de testar; a ascendência da jurisdição pública sobre a autoridade doméstica; o trânsito da educação paterna para o mestre; a libertação do filho do absolutismo do pater e, por fim, como os progressos da técnica, da riqueza e da vida folgada, a par das ideias estoicas, deram ao escravo, de coisa que era, o esboço de personalidade, que só o Cristianismo mais tarde lhe conferiu.

A construção mental, a vastidão e o escrúpulo dos informes, a concisão e a pureza literária, são o encanto perdurável deste livro; mas o espírito sistemático, se é um dos seus méritos, é também o seu defeito capital. Ele impediu o autor de abordar e cingir numerosas questões, e se é certo que e seu livro nos ensina com probidade e nitidez em que consistiu a expansão do Direito em Roma, não nos esclarece acerca do que, através da história romana, se furtou ao Direito, isto é, perdurou como violência, injustiça ou arbítrio. Descreve e explica; mas a nossa sede de demonstração nem sempre se dessedenta, notadamente acerca da primitiva família romana e da hipertrofia sociopolítica que ela atingiu.

Obra de historiador não devemos pedir-lhe o que o autor não teve em vista. Louvemos-lhe sim, a probidade científica e o respeito pela dignidade das nossas letras e da nossa língua, por vezes maltratada pela fúria da pressa e pelo desdém da inteligência e gosto alheios. Para quem foi guia a ideia da expansão do Direito e terminou o derradeiro período com as mágicas palavras da igualdade, liberdade e solidariedade, como padrões da evolução jurídica, esse livro não pode ser uma despedida. Ao lê-lo, arrebata-nos o espírito a convicção de que o Direito e a Civilização são uma e a mesma coisa com palavras diversas, e que se a Civilização tem futuro, o seu futuro é o Direito. Se esta é a lição suprema que o Prof. Artur Montenegro dá à nossa sociedade de incertos e de desiludidos, cumpre-lhe o dever de não se quedar, como Fustel de Coulanges, nas muralhas da Cidade Antiga, e de fazer suceder à Conquista do Direito na Sociedade romana, a Conquista do Direito na Sociedade moderna.


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