Obras de Farias Brito. O mundo interior. Ensaio sobre os dados gerais da Filosofia do Espírito. Introdução de Barreto Filho. 2ª ed., Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1951. 1 vol. de XXXI 402 págs.

O benemérito Instituto Nacional do Livro, do Ministério de Educação e Saúde do Brasil, iniciou a reedição da obra de Farias Brito (1862-1917) com o presente volume. A edição não obedece ao critério cronológico, começando precisamente pela última obra saída da pena do pensador cearense, e propõe-se reproduzir somente as publicações que apareceram em volume, deixando no olvido os panfletos e os escritos que Farias Brito não reeditou ulteriormente sob a forma de livro. Sem apurar se este procedimento do filósofo significa o repúdio das obras minores, cremos, não obstante, que somente será prestante uma edição exaustiva em que a cronologia e as circunstâncias peculiares de cada escrito não deixem margem a dúvidas. Farias Brito merece esta homenagem, que é, de resto a condição primária da apreciação objetiva de um pensador, cuja significação filosófica tem sido principalmente objeto de opiniões e que só recentemente, com a tese de Laerte Ramos de Carvalho, começou a ser verdadeiramente objeto de juízos. Os volumes dão a correlação do pensamento de Farias Brito com o pensamento europeu, mas somente os escritos minores, publicados em jornais e revistas, e mormente de circunstância, darão a integração plena do pensador cearense na realidade histórica brasileira.

Na sua introdução, Barreto Filho acentua, com justeza, a importância da obra de Farias «na economia espiritual da língua portuguesa». «Para que um povo, escreve, possa ligar-se intimamente ao trabalho filosófico universal é necessário, antes de mais nada, que alguém pense na sua língua o que já foi pensado por outros. A linguagem é instrumento não só de transmissão mas de assimilação de ideias, e cada língua corresponde a uma mentalidade que, para pensar, necessita desse sistema próprio de expressão... Farias Brito é o solitário detentor entre nós da tradição filosófica. Repensou por si mesmo todas as doutrinas e formou um instrumento de expressão adequado para fixá-las e transmiti-las». Sob este ponto de vista, a obra de Farias Brito é realmente singular na história da língua portuguesa, e como tal a devemos prezar brasileiros e portugueses, embora se deva notar que o seu vocabulário, sem ser de galiparla, se nutriu predominantemente de sugestões de influência francesa; corresponde, porém, à inegável genuinidade da expressão a autenticidade do pensamento? Foi a filosofia de Farias Brito a desenvolução de um pensamento que arrancasse de problemas pessoalmente descobertos ou redescobertos na meditação assídua de um filósofo e se nutrisse de indagações diretamente orientadas para o esclarecimento desses problemas, ou, pelo contrário, foi um pensamento que se constituiu a partir de respostas mais ou menos universalizadas? Por outras palavras: estamos em face do pensamento original e desenvolvido de Farias Brito ou da refração do pensamento de outrem em Farias Brito?

Responder seria julgar a totalidade de uma obra, de difícil consulta fora do Brasil; no entanto inclinamo-nos fortemente a pensar que é exagerado dizer-se com Barreto Filho que toda a obra do filósofo de A base física do Espírito «dá a impressão de grandes explorações concêntricas no campo do pensamento filosófico, convergindo para os temas centrais» seguintes: a conceção da natureza da Filosofia e suas relações com a Ciência; «a intuição do tecido mesmo da realidade» e «a tentativa de fundar em novas bases o comportamento do homem no seio do Universo, fazendo-o decorrer do princípio da verdade, para comandar o aperfeiçoamento individual e social».

O que conhecemos do filósofo cearense está em correlação com temas importados e não propriamente criados, constituindo precisamente um dos méritos da tese de Laerte Ramos de Carvalho o haver mostrado a correspondência com fontes diversas e até, por vezes, de sentido antagónico. Se é certo que o pensamento de Farias Brito radica na realidade histórica brasileira, cultural e política, não é menos certo que a sua problemática metafisica não se explica sem as limitações do materialismo e do positivismo, postas a claro tão vigorosamente por Lange, na História do Materialismo, e sem o largo crédito concedido à Psicologia, no último quartel do século passado, como ciência natural do espírito e fundamentadora da própria Filosofia. Sem o concurso destas correntes não é compreensível e muito menos explicável o intento de Farias Brito de fundar uma metafísica naturalista, isto é, uma metafísica que sem repudiar os dados da ciência natural restaurasse as condições teóricas da justificação de um ideário ético-religioso.

O mundo interior, agora reeditado, sendo testemunho vivo de uma reflexão filosófica capacitada e cônscia, não é produto de uma problemática pessoal. O próprio Barreto Filho tocou num dos pontos fundamentais quando escreveu que «através da Psicologia concebida como ciência do espírito, o que se visa aqui é diretamente o problema ontológico: procede-se à pesquisa, ao modo kantiano, do estofo interno do real, penetrando as aparências da fenomenalidade».

Sem tocar, ao de leve que seja, na indagação das fontes, nas quais, aliás, se tem de incluir a influência dos juízos de Desiré Nolen, principalmente acerca do idealismo alemão post-kantiano, em La critique de Kant et la métaphysique de Leibniz. Histoire et théorie de leurs rapports (Paris, 1875), nem por isso deixa de ser transparente que O mundo interior caminha por sulcos abertos pela filosofia kantiana e continuados por Schopenhauer , principalmente no livro II, que constitui quase todo o volume: «Questão fundamental: "a coisa em si" e os fenómenos». O próprio problema capital deste livro não se compreende fora do kantismo: se o ser do sujeito é independente do ser do objeto, se o Homem é puro sujeito e o Universo um sistema de relações independentes do sujeito mas que ele pensa, compreende-se que somente a razão prática possa superar a dualidade impenetrável do mundo inteligível. É o que transparece do período final de O mundo Interior: «... Na filosofia, quer esta seja considerada em seu sentido restrito, como ciência do espírito, quer em seu sentido mais amplo, como solução ou tentativa de solução do problema da universal existência, — de toda a forma, a verdade fundamental, a verdade que é o centro de todo o trabalho do espírito e o princípio mesmo do método, é ainda e será talvez sempre a que se encerra no velho preceito socrático: Conhece-te a ti mesmo».

Estas observações não diminuem o mérito de Farias Brito, cuja obra, como escreve justamente Barreto Filho, «é um inestimável depósito de ideias, que deverá ser posto em rendimento», nem corrigem o ilustre prefaciador da nova edição de O mundo interior. Somente servem de justificação ao nosso desejo de ver prosseguir em ritmo acelerado o empreendimento do Instituto Nacional do Livro e o nosso anelo de uma edição integral dos escritos de Farias Brito. O pensador cearense merece esta consagração e a história das ideias no Brasil só tem a lucrar com ela.


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