Montaigne na história da filosofia

Montaigne é o homem que não deixa aprisionar-se pela rede dos adjetivos, nem consente a separação espetacular do autor e do livro. «Je n'ay pas plus faict mon livre, que mon livre m'a faict: livre consubstantiel à son auteur, d'une occupation propre, membre de ma vie, non d'une occupation et fin tierce et estrangière, comme touts aultres livres», confessa, e de tão íntima camaradagem resulta não sabermos ao certo se foi Montaigne quem escreveu o livro, se foi o livro quem revelou a Montaigne a plena consciência de autor.

Pensamento que se procura em si próprio e através da variedade dos homens se reconhece uno e diferente, se vai desdobrando sobre si mesmo, ondulante e diverso como diversas são as perspetivas e os ângulos de visão, pari passu que o livro avança, ele via dilatar-se o território da sua consciência psicológica e da sua consciência moral.

Autor e livro marcharam a par, e se é certo que foi Montaigne quem lhe redigiu as páginas, foram as páginas escritas e sempre repensadas que lhe descobriram o homem que ele era, e, na sua individualidade concreta, «la forme entière de l'humaine condition». Foi esta descoberta do humano através de si próprio, ou, por outras palavras, da integração da consciência psicológica na consciência moral, que, a meu ver, impediu Montaigne de se submergir na anedota e no pitoresco do diário íntimo.

Do diário íntimo dizia Amiel, autoridade suprema na matéria, que era uma maneira de ocupar a ociosidade e um passatempo simulador do trabalho. Montaigne, porém, ao escrever, não teve a sensação de desperdiçar o tempo em solilóquios. Como o tímido pensador de Genebra, entregou-se à expansão de íntimas e às vezes impertinentes confidências, mas se se isolara e escrevia é porque tinha que dizer e se convencera de que, mediante as suas reflexões objetivas, conquistaria uma visão da existência, cujo conhecimento talvez interessasse ao género humano. E assim desembocamos naturalmente na pergunta que nos vai ocupar durante breves minutos: o que Montaigne disse e se esforçou por conhecer e decidir merece o raro predicado de filósofo?

Montaigne conheceu no século XVII a hostilidade de Port-Royal, para quem ele foi o monstro da sabedoria paganizada, que, se não ignora Deus, pelo menos desconhece Cristo. Não chegou Pascal, no paralelo famoso de Epicteto e de Montaigne, ao exagero de repartir a variedade infinita dos homens «du monde infidèle» em dois bandos, dos quais um e outro seriam os detestáveis capitães?

Depois, passada a crise problemática do ideal do «honnête homme», isto é, do homem de sociedade, acerca do qual vamos ouvir em breve o nosso sábio colega Prof. Plattard, Montaigne foi o assunto inesgotável da crítica literária e da erudição, mas só no nosso século foi descoberto pelos historiadores da filosofia. Montaigne filósofo é, portanto, um tema contemporâneo, mas este tema é um descobrimento ou uma invenção?

O homem ingénuo não compreende que sobre um escritor que nasceu há quatrocentos anos e cuja existência é recordada por monumentos, edições sábias e populares, e pelos estudos oficiais, não tenha, como a sua fama, conquistado a unanimidade dos juízos. E o homem ingénuo, isto é, aquele homem que só tolera as respostas precisas e maciças, tem razão.

Simplesmente Montaigne não escreveu para homens ingénuos, nem, sobretudo, os homens ingénuos devem ler Montaigne. É, um vinho capitoso para cabeças fracas e ser-lhes-ia insuportável este ser escoante e esquivo que depois de dizer sim dirá com insolência não, para nem sempre descansar sobre o «fofo travesseiro» do cómodo talvez. Pensarão que ele fez da incoerência a intriga urdidora do seu livro, e não pensam mal, pois é precisamente a incoerência humana, a instabilidade dos costumes e das opiniões, o sal e o pão que Montaigne lhes oferece.

Esta incoerência depara-se-nos logo que procuramos saber se Montaigne considerou o seu labor como um ofício de filósofo. Diz-nos algures que não, mas noutra ocasião não hesita em se apresentar como «filósofo impremeditado e fortuito», e tal contraste instila a suspeita de que o senhor de Montaigne não filosofou: tropeçou com a filosofia e acolheu-a com donaire de gentil-homem, sem se dar à cauta diligência de a desnudar e vestir de novo.

Que filosofia encontrou este sibarita do espírito, que foi ao mesmo tempo um excelente burocrata das letras?

É quase impossível extrair da matéria consútil dos Ensaios uma generalização global. Essais se intitula o seu livro, e logo no título se insinua a hesitação de Montaigne, pois em seu pensar «ensaio» não era um género literário, que aliás criou e os ingleses definitivamente afeiçoaram, nem uma composição sistemática e intelectualmente coerente. Significava simplesmente, esforço, tentativa, experiência.

O título, em seu prístino sentido, é, como vedes, o programa de um sagitário que prefere dardejar com argúcia de setas bem fabricadas. E com efeito, a construção dos ensaios não desmente o programa. Factos graves de braço dado com anedotas; juízos meditados em contubérnio com ditos hilariantes e facetos; glosas marginais em livros clássicos e contemporâneos, entre os quais devemos recordar a História do Descobrimento da Índia, de Fernão Lopes de Castanheda, o glorioso bedel da nossa Universidade, de mistura com sondagens introspetivas; o narcisismo estético a par da conceção estoica da Natureza — eis os ingredientes da arte singular deste prosador, que soube converter a ideia e sua expressão num bloco inimitável e único.

Na floresta imensa de factos, anedotas, sentenças e juízos, de glosas e observações, ouve-se, porém, um único canto: é a voz de Montaigne, bem timbrada e consciente de si mesma. Para a modular, não se poupou a leituras, nem a viagens, nem a conversações, e para que o leitor se não maravilhasse de ele reportar tudo a si e só de si falar, foi-lhe dizendo que «les aucteurs se communiquent au peuple par quelque marque spéciale et estrangière; moy, le premier, par mon estre universel; comme Michel de Montaigne, non comme grammairien, ou poëte ou jurisconsulte».

Eis-nos, pois, perante o ser universal do ensaísta, e a pergunta fácil que há pouco saltou diante de nós com lépida rapidez volve-se agora nesta outra mais precisa: o ser universal de Montaigne tem a dedada da criação filosófica?

Pela matéria e pelo método de trabalho Montaigne é um glosador. Ë um pensador que comenta factos, que escreve à margem de livros velhos e novos, e por consequência é o antípoda do filósofo. No entanto, as observações, os comentários e as glosas convergem para um único centro, e este centro é a sua consciência. De sorte que o problema consiste em saber se o centro aglutinante, para onde tudo converge, o ser universal de Montaigne, se insere numa conceção original do Mundo e da vida. Graças às eruditíssimas e penetrantes investigações dos professores Strowsky e Villey — e não posso pronunciar este nome sem me inclinar respeitosamente perante a memória do sábio, glória da França e da ciência universal das letras —, sabemos que à marcha cronológica e literária dos Ensaios, de 1572 a 1592, e ao enriquecimento progressivo das respectiva fontes, corresponde uma evolução espiritual na qual as ideias capitais e normativas não constituem um bloco anterior à redação dos Ensaios. Sabemos que, em 1572, é um estoico eclético, cujo acento antigo é quebrado pelo Cristianismo e pela meditação de Plutarco; sabemos que o ceticismo lhe inundou o espírito, em 1576, quando escreve a Apologia de Raimundo Sebunde, após a leitura de Sexto Empírico e da ingestão dos argumentos da Nova Academia; sabemos, finalmente, que nos derradeiros anos da vida transitou do estoicismo mitigado e do ceticismo universal para o epicurismo cético, sobre o qual edificou uma arte de bem-viver «no seio da ociosidade tranquila».

Como vedes, o fundo ideológico, assim como as ideias condutoras de Montaigne, não são criação original sua. Dir-se-ia que são telas, nas quais ele debuxa e pinta, mas jamais pode esquecer-se que quem debuxa e pinta é Montaigne e só Montaigne.

Pela dissecação crítica nós descobrimos que sob a estrutura dos seus raciocínios quase voluptuosos de cético está a argumentação de Sexto Empírico, mas ao repeti-la Montaigne solta a voz da modernidade, quando transfere a dúvida do puro plano da razão para o plano da crença e dos valores: «Nous appelons valeur en les choses, diz ele, non ce qu'elles apportent, mais ce que nous y apportons».

A meio caminho da antiguidade e da modernidade, o subjetivismo de Montaigne foi o epílogo lógico da Renascença.

A Renascença conhecera toda a sorte de dogmatismos e de entusiasmos, mas era acaso possível a vida coerente no seio de tanta contradição?

Começando por duvidar de tudo, Montaigne chegou à descoberta da autonomia do homem, que não carece de dogmatismos teológicos ou metafísicos, e não há porventura nesta descoberta a ressurreição consciente do gnôthi séauton de Sócrates? «Il n'y a que vous, escreve, qui sache si vous êtes lâche et cruel, ou loyal et dévotieux; les aultres ne vous voyent point, vous devinent par conjectures incertaines; ils voyent non tant vostre nature que votre art; par ainsi, ne vous tenez pas à leur sentence, tenez vous à la votre».

A Renascença vira coisas admiráveis e aprendera conhecimentos insuspeitados, mas não conhecera um método que ministrasse à inteligência a possibilidade de extrair a verdade do montão de opiniões. Montaigne descobre o que ele chama «o instrumento judicatório», e se é certo que o aplica apenas para acentuar a diversidade e as contradições lógicas, lança à terra a semente que o génio de Descartes vai fazer frutificar.

Finalmente, da sua introspeção, aventureira e incerta, colhe o contentamento da consciência «non comme de la conscience d'un ange ou d'un cheval, mais comme de la conscience d'un homme». Não há, porventura, nesta apreensão a matriz da antropologia filosófica moderna e uma ideia capital no desenvolvimento da Ética contemporânea?

No entanto, em meu juízo, Montaigne não foi filósofo, ou, no formoso predicado que o Sr. Thibaudet lhe atribui, «l'homme qui s'appelle Callias». Ele não viveu a vida teorética do homem Calias, e, por caminhos diversos e método diferente, creio poder dizer, como o Sr. Van den Bruwaene, que a sua atitude reflexiva «est préoccupée non pas de savoir quelles questions il faut poser, et encore moins quelles solutions il faudra donner, mais elle s'habitue à demander surtout comment il faut poser les questions».

Não sendo filósofo, o historiador da filosofia, porém, não pode desconhecer este perturbante semeador de dúvidas, que legou à Humanidade largo quinhão da problemática que o século XVII, o século do Génio, aspirou resolver, e à sua Pátria, pela união da mente raciocinante ao coração tranquilo, uma imagem representativa do espírito francês.


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