Sobre a origem da conceção da inconsciência de Deus em Antero de Quental

Ao Doutor Celestino da Costa, na festa gratulatória do seu aniversário e das quatro décadas da sua atividade científica.           

Antero foi urna alma essencialmente religiosa, a despeito de reiteradas afirmações antidogmáticas, e jamais deixou de ser presente à sua consciência o mistério do sentido da Vida em conexão com o da significação do Universo. Por isso, não surpreende que o seu espírito tivesse vivido sinceramente algumas das formas expressivas da atitude da consciência para com Deus, desde a da prática ritual, recolhida e humilde, e, passando pelo sentimento deísta do numinoso e da Providência, à do repúdio soberbo e desabrido, e que o seu pensamento se houvesse detido com mais ou menos demora no Deus-Todo-Poderoso, no Deus-Amor, no Deus-Justiça, no Deus categoria do ideal, e na própria preterição de Deus na ordem especulativa e prática, porque todos estes sentimentos e todas estas ideias e atitudes ecoaram na sua alma — e por vezes na meditação — como flutuações de almejada antropologia filosófica e interpretação metafísica da existência.               

Singularmente e no conjunto da sua sucessão, estas conceções aguardam o estudo de que são dignas e que, possivelmente, tentaremos um dia; por agora, e como contributo para ele, desejamos somente examinar a origem da conceção da inconsciência de Deus, expressa no soneto O Inconsciente:           

O espectro familiar que anda comigo,

Sem que pudesse ainda ver-lhe o rosto,

Que umas vezes encaro com desgosto

E outras muitas ansioso espreito e sigo,

É um espectro mudo, grave, antigo,

Que parece a conversas mal disposto...

Ante esse vulto, ascético e composto,

Mil vezes abro a boca... e nada digo.

Só uma vez ousei interrogá-lo

«Quem és (lhe perguntei com grande abalo)

Fantasma a quem odeio e a quem amo?»

«Teus irmãos (respondeu), os vãos humanos,

Chamam-me Deus, há mais de dez mil anos,

Mas eu por mim não sei como me chamo».

A estrutura ideológica deste soneto, escrito em 1875, assenta na teoria do Inconsciente de Edouard von Hartmann (1842-1906). O desenvolvimento das ideias é simples, sem o fôlego e a dimensão metafísica de outros sonetos posteriores inspirados na mesma teoria, o que se explica, como veremos, por Antero ainda não haver lido neste ano os próprios livros do filósofo alemão, cujas conceções apenas conhecia sumariamente, mediante resumos expositivos ou críticos. O emprego da maiúscula na palavra Inconsciente revela logo que Antero tinha em vista uma conceção vasta, sem confusão possível com os sentidos limitados da velha metafísica e da psicologia recente, designadamente, por mais acessível à sua formação de letrado, o das «petites perceptions» de Leibniz, isto é, de estados cuja ação exígua não atinge a consciência. Deixando de lado o exame da interpretação demoníaca do «Inconsciente» como «espectro familiar», «ascético e composto», claramente reveladora de deficiente conhecimento da teoria, e o da designação de Deus que os homens lhe deram, atentaremos apenas na ideia de ausência de consciência em Deus, expressa nos dois versos finais:

Chamam-me Deus, há mais de dez mil anos,

Mas eu por mim não sei como me chamo.

 

É esta uma conceção antiga, que tem, pelo menos, três marcos capitais na sua jornada histórica: Plotino, nos derradeiros tempos do helenismo, Espinosa, no século XVII, que foi o século do génio científico, e Edouard von Hartmann, na segunda metade do século passado.

Plotino exprimiu-a na Enéada VI (9,6), quando disse do Ser Supremo, com surto místico, que não tem vontade nem pensamento de si próprio, porque a «alteridade» que implica repugna à essência do Uno. No desenvolvimento desta ideia, Escoto Eriugena tirou a consequência: Deus itaque nescit se, quid est, guia non est quid, ignorando-se Deus a si mesmo, porque qualquer definição é sempre uma limitação e limitação alguma é aplicável ao Ser infinito, cuja infinidade está além e acima do exercício do nosso pensamento.

Com Espinosa, a conceção alcança profunda significação metafísica, de admirável e sedutora coerência, porque a equação Deus siue natura importa a identificação de Deus com o ser (substantia) e, portanto, o repúdio, por contraditório, dos conceitos de personalidade divina (antropomorfismo) e de ens perfectissimum e, consequentemente, da existência em Deus de pensamento, de vontade e de consciência de si próprio.

Edouard von Hartmann, na linha do idealismo alemão, que transfigurava o Deus-Pessoa em «razão universal do Mundo» (Kant), ordo ordinans (Fichte, da primeira época) e sujeito lógico infinito (Hegel), repudiou também a ideia de Deus com atributos de «antropopatismo», isto é, de consciência, memória, sentimento, pensamento, etc., fenomenologicamente sempre ligados à existência de um sistema nervoso, concebendo-o, em consequência, sem as limitações inerentes ao eu, como «espírito inconsciente e impessoal».

«O teísmo, escrevia Hartmann, já nada tem a recear de ver diminuído o seu Deus pela perda da consciência, e antes deve compreender que o predicado daconsciência só amesquinharia Deus, visto a inteligência que lhe reconhecemos ser superior à consciência. (...) Sem dúvida, para nós, homens, a consciência e a personalidade são perfeições, não em absoluto, como a razão, mas relativas. A consciência representa uma vantagem, porque vivemos no mundo da individuação e nos seus limites. Para realizarmos completamente os fins do nosso ser individual, devemos separar o mais profundamente possível a nossa pessoa das demais e do mundo impessoal das coisas externas, mas o Todo-Uno, fora do qual nada existe, não conhece tais necessidades. Em si e por si e fora das necessidades especiais de uma inteligência limitada pelo lugar que ocupa no mundo da individuação, a consciência não é uma perfeição. Digamos antes que, em face da unidade dos atributos que constituem o Inconsciente, ela é uma privação, uma perturbação na paz absoluta em que se exerce a clarividência intuitiva e espontânea do Inconsciente, enfim, como a laceração da harmonia dos atributos do Todo-Uno. Em lugar do acordo, põe a divisão, e o sujeito e o objeto, que se conciliam e unem na Ideia absoluta, são violentamente separados e arrancados à sua indiferença por esta rutura...

«Todas estas limitações do ser, e o próprio teísmo o reconhece, devem ser eliminadas do seu Deus: sem elas, a consciência desvanece-se, visto ela proceder das próprias limitações. Se, por consequência, pode definir-se a consciência como uma limitação do ser, não é um defeito positivo negar que exista no Uno-Todo uma limitação desta natureza. (...) Se se suprimem os limites que os sentidos e a individualidade finita importam ao ser, mesmo para Deus, se em vez da representação limitada se concebe a Ideia absoluta, só teremos diante de nós a pura matéria da representação.


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