1. Problemática da saudade

Do conjunto destas considerações resulta, finalmente, o problema central e totalizante da significação metafísica da saudade, ou talvez mais propriamente, a importância da saudade como dado para uma interpretação metafísica da existência.

Se por filosofia se entender a teoria geral do mundo como síntese do saber ou a fundamentação crítica da possibilidade do próprio saber, a saudade é um acontecimento individual que se submerge apagadamente na interpretação geral da vida psicológica; porém, se se entender que para além do mundo que nos é dado, do qual somos espectadores, há o mundo das qualidades e das significações, do qual somos criadores pela arte, pela ética e pela metafísica, e que a filosofia é fundamentalmente interpretação qualitativa, então a saudade pode ser elemento capital de uma interpretação metafísica da existência, por implicar uma tomada de posição perante o mundo, a qual afeta a totalidade da existência vivida e a viver.

A consciência de estar no mundo não creio que seja princípio bastante e suficiente de uma explicação metafísica da realidade que se vive, mas a explicação total da realidade que se vive não pode menosprezar os ensinamentos e as correlações implícitas na consciência saudosa.

Como é óbvio, o homem saudoso percebe o mundo externo e o mundo interno exatamente como o homem que o não é. É com os mesmos sentidos, com os mesmos processos, com as mesmas categorias que um e outro apreendem sensações, elaboram ideias e generalizam abstrações; no entanto, os dois homens podem divergir, se é que não divergem, na maneira como interpretam a existência, de tal sorte que ao lado de uma interpretação intelectualista e de uma interpretação pragmática se pode falar de uma interpretação saudosista. Assim, creio que todos reconhecem o contraste do personalismo inerente à saudade com a impessoalidade do racionalismo convicto que a virtude pode ser demonstrada como um teorema de geometria, tal como Espinosa, para quem a explicação cabal e a suprema felicidade consistem na plena integração do modo da existência de cada um no ser da substância donde tudo procede necessária e necessitantemente.

A presença espiritual da ausência outrora vivida e agora desejada, que é porventura a essência da saudade, desentranha alguns problemas, como o da realidade vital do tempo, o da realidade da mudança e da alteração e o da existência da multiplicidade irredutível dos seres e das consciências, cujas soluções são elementos indispensáveis de qualquer configuração metafísica da existência e da conceção da vida. Com serem importantes, creio não obstante, que a significação suprema da saudade consiste em conduzir o pensamento a interrogar-se e a interrogar a existência vivida e a viver, percetível e desejável, na sua expressão concreta, e não meramente abstrata e menos ainda como espetáculo de que a mente e o coração humanos sejam meros espectadores, passivos e indiferentes.           

Tais são, em rápido conspecto, os problemas capitais que se me afiguram existir no tema da saudade como objeto de reflexão. Ao escolher este assunto, tive fundamentalmente em vista chamar a atenção para a possibilidade de se descobrirem problemas e filosofemas mais ou menos correlacionados com a nossa idiossincrasia. Creio saber que a índole e o teor da filosofia são supranacionais, ou melhor, a-nacionais; mais creio saber também que o próprio de uma consciência nacional irredutível pode alcançar pela arte, pela ação e pelo pensamento significação universal, e que este é um dos desideratos mais altos que se oferecem à mente de portugueses e de espanhóis, tanto no que os aparenta como no que os separa. A vida histórica de uns e outros, assim como as peculiaridades dos seus génios nativos encerram temas e problemas a um tempo de significação nacional e universal; e destes temas, a saudade é, porventura, o que mais promete e o que mais instantemente aguarda quem lhe desvende o potencial de filosofemas com coerência lógica e consistência doutrinal.           


?>
Vamos corrigir esse problema