1. São Paulo e o Brasil que se constrói

Non ducor, duco (não ando ao mandado, comando), é a divisa, desassombrada e altiva, da cidade de São Paulo. Nenhuma outra se excogitaria mais conforme à índole da gente onde se gerou o bandeirante e ao esforço cia localidade que ascendeu de paupérrimo aldeamento sertanejo de há quatrocentos anos, estabelecido na colina entre o Anhangabaú e o Tamanduateí, à capitalidade da poderosa e atrativa metrópole dos nossos dias, “a cidade do mundo que mais cresce”. No domínio da ação, a divisa como que condensa a gesta assombrosa que concorreu, como nenhuma outra, para o estabelecimento das fronteiras geográficas do Brasil; e no domínio moral, ela enlaça o denodo da iniciativa ao amor da independência, um e outro timbre e glória da gente paulista e seu máximo contributo para a consciência patriótica brasileira.

As concisas e densas palavras latinas são, assim, a um tempo, suma e guião da história paulista, no íntimo e na desenvolução uma história voltada predominantemente para o Brasil que se constrói, que não para o Brasil que se continua.

Fundação inicial de reinóis, na qual se associaram solidariamente o agente do Estado e o missionário da Igreja, mantida e consolidada por descendentes de portugueses e por caboclos, a povoação de São Paulo é testemunho admirável da evolução de um território meio social de características peculiares e, por fim, a componente da alma brasileira e da confederação política do Brasil.

Esta linha ascendente partiu do arraial, que foi, a um tempo, atalaia e centro missionário, passou pela organização da capitania e pela da província, para culminar na do estado, de poderosa influência na vida da atual confederação. A sua força criadora procede, radical e originariamente, da colonização e da compleição portuguesas, sem cujas temeridades e desconfianças, tendências e repulsas, virtudes e defeitos, se não compreende cabalmente, mas desenvolveu-se com as exigências do meio físico e social e adquiriu vulto próprio com o sentimento da brasilidade, cuja índole assimiladora acrisolou, numa só alma, as múltiplas tendências de variadas gentes e raças. Sem a realidade histórica portuguesa não é compreensível nem explicável a realidade brasileira, porque Portugal e o Brasil são países que a geografia distancia e fez diferentes mas que a história, sob um ponto de vista, separou e, sob outro, uniu, ou, mais propriamente, tornou inseparáveis por alguns vínculos psicológicos e algumas estruturas e comportamentos sociais. A correlação com Portugal é uma realidade, mas não menos real é a formação do sentimento brasílico nos tempos coloniais e cuja desenvolução se constituiu em consciência brasileira própria, irredutível, absorvente e integrativa.

Vista de fora, principalmente em relação à fragmentação do império espanhol das índias, a unidade política do Brasil, inquebrantavelmente mantida através da imensidade do território, da diversidade das regiões, dos contrastes dos regimes de vida e das vicissitudes do acontecer histórico, é algo de extraordinário, para não dizer de misterioso; e, vista de dentro, olhos postos nos matizes e cambiantes da agremiação social, não é menos extraordinária e misteriosa a força coesiva da consciência nacional brasileira, que assimila, conforma e engloba numa só comunidade de esperanças e de destino, ao calor da sensibilidade afetiva, a multiplicidade dos elementos étnicos que compõem a população e a variedade das estruturas e áreas culturais em que ela se diversifica.

Sociologicamente, o Brasil não foi descoberto nem achado, mas sim construído, dado que as suas fronteiras geográficas foram estabelecidas pela vontade, a sua vida social modelada pela confluência do adventício, do indígena e do meio, e a sua cultura transplantada, assimilada e por fim recriada com desígnio nativa ou constitutivamente brasileiro. É, na plenitude do termo, um país jovem, com todas as seduções e leviandades da juventude, cuja consciência nacional, tão cordial, fremente e suspicaz, não tem ainda, felizmente, as arestas rígidas e cortantes que o tempo talha e petrifica nas consciências que envelhecem ou se deixam envelhecer.

Nascida em meio físico e cultural característico, com exigências e anelos privativos, a consciência da brasilidade apresenta uma marcha constitutiva própria, com marcos salientes de progressão, que aliás a desviam mas ainda a não desligam das raízes e vincos da compleição portuguesa. A sua génese e constituição são por demais subtis e complexas para se deixarem aprisionar por simplificações e esquematismos. Penso, não obstante, que, sem grande violência, se podem assinalar a sucessão e correlativa integração de quatro convergências na formação da consciência nacional brasileira.

A primeira, na ordem do tempo e do sentido aglutinante e conformativo, procede diretamente da estruturação administrativa da colónia e da hierarquia e solidariedade dos respetivos organismos e circunscrições territoriais. Desde a primeira hora, as regiões recém--descobertas e ocupadas foram consideradas pela metrópole como parcelas de uma unidade, que as necessárias e inevitáveis divisões administrativas não fracionavam e muito menos separavam.

A segunda, de sentido territorial, é a noção do Brasil como unidade espacial. Para a consciência portuguesa, o Brasil foi sempre um todo único que somente para efeitos administrativos se dividia em circunscrições; e para os nados luso-brasileiros, esta consciência da unidade do território que constitui o país, embora não forme um Estado, manifesta-se já no século XVII, sentida e ativamente, na solidariedade prestada por baianos e paulistas à luta dos pernambucanos contra o invasor holandês, a qual, também, já teve a contribuição do homem de cor.

Foi esta consciência territorial como que a base física do curso psicossocial em que a cultura portuguesa se mesclou com a cultura local, confluindo ambas num ritmo e com exigências que tendiam para a diferenciação, do que, aliás, deu testemunho eloquente o padre António Vieira.

A quarta, finalmente, deu-se pela concomitância destes sedimentos, tendências e factores no sentido da vida autónoma, independente e responsável, em virtude da ação sinérgica da geografia e da história, do meio físico e do homem, da sociedade e dos interesses, das incompreensões e das determinações, do inevitável e do casual.

Todas as regiões colaboraram no processo constitutivo da consciência nacional brasileira, umas mais ativamente do que outras e cada urna com o alento vital da sua idiossincrasia peculiar: o cearense, de inteligência aberta e ágil, com a alma temperada na resistência às calamidades da terra adusta e calcinada; o pernambucano, com o sentimento arreigado da continuidade das gerações e com o respeito da hierarquia social; o baiano, com o enlevo do verbo, a sedução do ritmo e a volúpia dos sentidos, em comunhão com a terra radiosa onde se compenetraram como em sítio algum as maneiras de ser do ameríndio, do europeu e do africano; o mineiro, com o sentimento da seriedade da vida e a doçura do trato; o fluminense, com a ironia pronta e fácil e a satisfação do viver; e o gaúcho, com o garbo e a desenvoltura da vida larga e franca. Na construtura de múltiplas disposições e virtualidades que é a alma brasileira, cuja nota dominante Paulo Prado pensou ser a tristeza e Ribeiro Couto, porventura com mais acerto, pensa ser a cordialidade, o paulista tem também o seu contributo, que é o do espírito inovador e progressivo. Este é o vinco característico da alma paulistana, coerente, aliás, com a índole da sua gente, que se afeiçoa à mentalidade de herdeiro, com a naturalidade da sua terra, que nunca se deixou enlear e imobilizar na contemplação do passado, e com o seu destino histórico, que é o de ocupar a vanguarda do Brasil que se constrói.


?>
Vamos corrigir esse problema