2. Noticia e análise de livros

1. Este volume é constituído pelas lições que o autor, atual diretor da Faculdade de Filosofia da Universidade Nacional do Brasil (Rio de Janeiro), proferiu na Sorbona, a convite da Universidade de Paris, e tem por objeto alguns aspetos da evolução da sociologia no Brasil e dos factos sociológicos em ordem a uma visão da realidade social brasileira. 

O autor desenvolve o assunto com coerência lógica e consistência objetiva, sem aliás abafar os seus anelos de pedagogo e de patriota, e sem interromper a tradição da sociologia brasileira, que jamais perdeu de vista as dimensões práticas e políticas da investigação. Teoricamente, o autor não separa a realidade brasileira da realidade social do continente americano, no qual, como escreve, “a vida está sujeita a contínua mudança, a sociedade em crise de constante readaptação num mundo cuja característica é a fusão permanente de raças e de meios culturais os mais diversos”; e praticamente, corno brasileiro atento às exigências sociais e morais do seu país, detém-se particularmente na observação das realidades cujo estudo desentranha orientações práticas de ordem civilizacional e progressiva.    

Teoria e programa confluem, pois, no seu espírito; por isso, coerentemente, começou por apresentar a sociologia como “estudo dos factos sociais, orientado para os princípios e métodos que permitem que eles        sejam explicados e utilizados em ordem à compreensão e condução da vida em sociedade”, para logo se ocupar da realidade social brasileira de mais instante solicitação e de mais promissor resultado para o futuro do Brasil: a existência de meios rurais diferentes do meio urbano das cidades do litoral. São de vivo interesse as observações e juízos do autor, justificando plenamente o assunto da segunda lição, dedicada à exposição do essencial e fundamental acerca do advento dos estudos sociológicos na América e, principalmente, do desenvolvimento peculiar que alcançaram no Brasil. As páginas (28-40) que dedicou a este último assunto são de grande significado e préstimo, pondo bem a claro três coisas altamente honrosas para a cultura brasileira: a existência de uma escola sociológica, com orientação própria e em pleno desenvolvimento, a contribuição de algumas obras literárias para o conhecimento sociológico e a constituição de uma temática literária diretamente enraizada no Brasil e cuja explicação e valoração se não podem obter com as categorias válidas para a história literária europeia. O sentido do peculiar, tão sensível nos anelos culturais do Brasil, tem nestas páginas uma expressão sintética, altamente sugestiva e orientadora. O autor acentua, como cumpria, a conexão da constituição dos estudos sociológicos no Brasil com a sociologia de Comte, mas suscita reparo a justificação que dá para a voga que o positivismo alcançou no Brasil. A seu ver, brasileiro algum “podia ficar insensível a uma filosofia que predicava a subordinação do progresso material ao progresso moral, da força ao direito, e segundo a qual as leis da conduta social tinham o seu ponto de apoio em todas as liberdades: liberdade do culto (separação do temporal e do espiritual), liberdades civis e políticas, liberdade de associação, de greve pacífica, de expressão de pensamento, de exercício profissional, e de testar” (p. 23). Sem dúvida, no Brasil, como alhures, principalmente nos países de idiomas latinos, o positivismo comteano entusiasmou numerosos espíritos, mormente dos que, como escreve o autor, “procuravam enquadrar a estrutura política do Estado nas aspirações da dignidade humana”, mas não parece explicação suficiente para o facto a atração moral que as conceções de Comte suscitaram. Afigura-se-nos que a razão é mais sociológica do que propriamente filosófica ou moral, e que ela radica na conjuntura que o Prof. João Cruz Costa, da Universidade de São Paulo, assim resume: “O advento do positivismo no Brasil não seria apenas um índice da necessidade de desenvolvimento técnico e científico da sociedade do Império. Coincidindo com os primeiros sinais de decadência do regime imperial e com as crises políticas subsequentes a 1860 — quando começaram a ser sentidas as primeiras consequências da abolição do tráfico —, o positivismo representou a reação de uma nova classe de letrados, 'quase todos descendentes de gente de poucos haveres, moços que ingressaram na carreira das armas para conseguir a instrução, que as condições de vida lhes negavam' (L. L. Cardoso, Licínio Cardoso, Rio de Janeiro, 1944, p. 22). O positivismo vibrara o primeiro golpe no bacharelismo coimbrão... Era a matemática contra o latim, a positividade da ciência contra a silogice legista e fradesca”.

Na sequência do desenvolvimento da caracterização da peculiaridade da realidade social brasileira, o autor dedicou a terceira lição ao estudo da evolução política social e cultural das Américas, em ordem à diferenciação e caracterização das colonizações anglo-americana e latino-americana: enquanto esta teve por fim a exploração das riquezas, aquela teve por alento “a fundação de pátrias livres, com poderes públicos constituídos, cultura organizada e culto religioso garantido”. Daqui, métodos diferentes na atividade e consequentemente contrastes e diversidades na estrutura e no alcance da evolução cultural, social e política das duas Américas. Expondo a seguir o que considera essencial e característico do ensino durante o período colonial da história brasileira, o autor não hesita afirmar que é pela cultura, e não pelo sangue, que os brasileiros se consideram latinos. A afirmação, talvez exagerada, apesar da miscigenação, pois cremos que, mais e melhor do que pela cultura, os brasileiros, como os portugueses, se peculiarizam pela maneira de ser e, sobretudo, de sentir a existência que se vive, não afeta a penetração com que o autor caracterizou a mentalidade que conduziu as nações sul-americanas à independência, e em especial a explicação da unidade que o Brasil logrou manter, devida, a juízo do autor, fundamentalmente ao regime político e não propriamente a causas sociológicas.

Num país da imensidade territorial do Brasil e com a diversidade de meios geográficos, étnicos e sociais, o problema da relação das “áreas de cultura”, ou sejam as regiões de características peculiares no que respeita a tradições, hábitos, costumes e regime de trabalho e de vida, com a nação e com a sociedade internacional assume particular importância. Por isso, o autor se ocupou na quarta lição do “regionalismo e internacionalismo na América e no Brasil”, em termos que conjugam os juízos do sociólogo com os anelos do pedagogo e do patriota. O estudioso da cultura portuguesa, ou mais propriamente da maneira de ser que singulariza os portugueses, encontra nas páginas desta lição alguns juízos, dignos de ponderação, sobre as características da colonização portuguesa no Brasil.

O ideal progressivo que alenta o pensamento do autor conduziu-o naturalmente ao exame do problema da superação do localismo, implícito na existência das “áreas de cultura”, o que equivalia a transpor o plano da realidade e a situar-se no do valor. Consequentemente, a lição quinta teve por objeto, não um tema descritivo mas a consideração das relações do pensamento e da ação em função das consequências sociais que delas resultam. O pedagogo e o político, que ao longo das lições sempre haviam convivido com o sociólogo, orientam absorventemente o pensamento do autor no tratamento do assunto. Pouquíssimos lhe contestarão os juízos críticos acerca do valor atual da atividade intelectual isolada e da educação liberal no sentido tradicional e como o autor, anelem pelo acordo profundo entre intelectuais e homens de ação; no entanto, cremos que não faltará na gente latina quem oponha dúvidas e reservas à revisão dos valores educacionais que propõe, de olhos demasiadamente fitos na América saxónica.


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