1. Pedro Nunes mestre do Cardeal-Infante D. Henrique

NOTA BREVE

A PROPÓSITO DE NOVOS DOCUMENTOS NONIANOS

DA BIBLIOTECA EBORENSE

O conhecimento da biografia de Pedro Nunes está envolto em numerosas obscuridades, havendo mesmo períodos da sua vida acerca dos quais não possuímos quaisquer informes documentais.

De modo geral, o desconhecimento da biografia não afeta a compreensão e a explicação das obras que ele quis que constituíssem o seu legado científico, ou sejam as que reviu e deu ao prelo no último decénio da sua existência: o De duo bus problematis circa navigandi artem liber unus e o De regulis et instrumentis, ad varias rerum tam maritimarum quam et caelestium apparentias deprehendendas ex Mathematicis disciplinis liber II, em 1566 e 1571-1573, os quais são respetivamente a tradução acrescentada e modificada dos dois tratados insertos em 1537 no Tratado da Sphera, a saber, o Tratado... sobre certas dúvidas da navegação: dirigido a el Rey nosso Senhor e o Tratado... em defensam da carta de marear: com o regimento da altura. Dirigido ao muyto escrarecido: e muyto excelente Principe ho Iffante dom Luys; o In problema mechanicum Aristotelis de motu navigii ex remis Annotatio una, em 1566 e em 1571-1573, cujo original português parece ter sido dado ao prelo, não constando atualmente a existência de qualquer exemplar; o In Theoricas planetarum Georgii Purbachii annotationes aliquot, em 1566 e 1571-1573; o Libro de Algebra en Arithmetica y Geometria, em 1567; o De crepusculis liber unus, nunc recens et natus et editus. Item Allacen Arabis uetustissimi, de causis crepusculorum liber unus, a Gerardo Cremonensi iam ohm Latinitate donatus, nunc vero omnium primum in lucem editus, em 1542 e reeditado sem alterações em 1571-1573; e o De erratis Orontii Finaei, Regii Mathematicarum Lutetix Professoris. Qui putauit inter duas datas lineas, binas medias proportionales sub continua proportione inuenisse, circulum quadrasse, cubum duplicasse, multangulum quodcun que rectilineum in circulo describendi artem tradidisse et longitudinis locorum differentias aliter quam per eclipses lunares, etiam dato quouis tempore, manifestas fecisse, publicado em 1546 e reeditado sem alterações em 1571-1573.

Estes são os livros que legitimamente se pode supor que Pedro Nunes considerou verdadeiramente dignos de lhe perpetuarem o nome, dado que não curou em reeditar o Astronomici introductorii de Spaera Epítome nem em dar ao prelo algumas outras a que em parte se referiu no final do De crepusculis e das quais tivemos a fortuna de reconhecer e de identificar uma inteiramente ignorada e a que pusemos o título de Defensão do tratado da rumação das pomas para a arte de navegar, ao presente no prelo.

Numa atividade como a do nosso insigne sábio, que sempre se exercitou sobre problemas científicos que pretendem alcançar o assentimento mediante a demonstração racional, o conhecimento da biografia é, de algum modo, secundário, o que aliás não quer dizer que seja inútil. É que a história genética de alguns problemas e a desenvolução da marcha do espírito no sentido do respetivo esclarecimento ou demonstração encontram por vezes a compreensão cabal, quando não explicação exata, em acontecimentos da vida pessoal ou da situação social, mormente nas épocas em que o mecenato deu ensejo ao teor de certos escritos e pensamentos. É o que se ilustra suficientemente com as relações que Pedro Nunes manteve com o cardeal-infante D. Henrique.   

A documentação atualmente conhecida não permite datar-se com exatidão a época em que se iniciaram as relações entre o infante D. Henrique e Pedro Nunes. Tudo indica, no entanto, que tiveram começo com as lições que a convite de D. João III Pedro Nunes ministrou ao infante.  

Também se não conhece qualquer documento oficial comprovativo do convite e do teor das lições, mas esta deficiência é de algum modo compensada pelos informes da dedicatória do De crepusculis a D. João III, de 27 de Outubro de 1541. É que nestes períodos, de importância biográfica e histórico-científica, Pedro Nunes refere factos que permitem ilações exatas acerca da cronologia e do teor do seu magistério áulico, que teve por alunos os infantes D. Henrique, D. Luís e D. Duarte.               

Deixando de lado o magistério destes dois últimos infantes para considerarmos somente o de D. Henrique, apura-se da dedicatória do De crepusculis que as lições começaram em 1531 e que tiveram por objeto o quadrívio ou artes reales, ou sejam a aritmética, geometria, astronomia e música, segundo a ordem que se tornou tradicional depois de Alcuíno.  

A primeira destas ilações funda-se na referência expressa de Pedro Nunes ao início das lições, que declara ter sido decem abhinc annis, o que equivale a dizer que foi no ano de 1531, visto a dedicatória ser datada de 1541.

O infante tinha então dezanove anos e Pedro Nunes, que já era cosmógrafo do reino e lente da Universidade de Lisboa, vinte e nove.

A segunda ilação baseia-se não só na declaração de que Pedro Nunes fora incumbido por D. João III de ensinar a D. Henrique “as ciências matemáticas”, como principalmente na explicitação dos assuntos que ensinou, a saber, rudimentos de aritmética, os Elementos de geometria, de Euclides, a teoria da esfera, a teórica dos planetas, parte do Almajesto de Ptolomeu, a Mecânica de Aristóteles, a cosmografia e a prática de alguns instrumentos, assim antigos como modernos, relativos estes à arte de navegar, de invenção do próprio Pedro Nunes.

Sem aduzir a prova analítica, que consiste essencialmente na significação histórico-científica e pedagógica de cada uma destas disciplinas e matérias, o que já fizemos noutro lugar, pode dizer-se que este quadro de estudos corresponde ao curso medieval do quadrívio, com exclusão da música, cujo objeto principal era a aprendizagem do cantochão e respetiva teoria. Consequentemente, antes das disciplinas do quadrívio, estudou D. Henrique, como os demais infantes, o Trívio, ou por outras palavras, as artes sermocinales, constituídas pela gramática, isto é, o latim, pela dialética, ou seja a lógica, e pela retórica.

Entrado o século de Quinhentos no seu segundo quartel mantinha-se ainda na mais alta e mais proficiente aula do país o plano tradicional de estudos, mas o facto não significa de maneira alguma anacronismo e atraso científico. É que já se vivia então sob a ascendência de ideias cujo teor e sentido configuraram a Renascença, e consequentemente a designação das disciplinas só tinha de medieval o nome, porque a matéria e a didática com que foram ensinadas já se apresentam com o selo da modernidade.

Com efeito, a enumeração das matérias reales ensinadas por Pedro Nunes revela claramente o sentido moderno, já na feição prática, já nos textos de estudo, designadamente os Elementos de Euclides, o Almajesto de Ptolomeu, e as mecânicas de Aristóteles; e no que respeita às artes sermocinales, o testemunho de Nicolau Clenardo não é menos revelador. O famoso humanista flamengo, que veio para Portugal em 1533 contratado para ensinar as humanidades ao infante D. Henrique, diz na Epistola ad Christianos que o infante estudou o grego, o hebreu, a filosofia, a teologia e a matemática: Tacebo Graecas, Hebrxasque litteras, quas praeter Philosophiam et Theologiam utcumque degustauit, nec nominabo Mathematicas, quas et ipsas didicit.

Este plano é bem o do humanismo renascentista, pela importância conferida às línguas sábias, e se Clenardo se não refere ao latim é porque o infante já o havia estudado como propedêutica necessária aos demais estudos, podendo até acrescentar-se que o aprendeu como língua viva, segundo o método dos colóquios, como diziam os humanistas, porque, segundo conta André de Resende na Vida do Infante D. Duarte (p. 32), no primeiro encontro do infante com Clenardo aquele lhe falou em latim, pelo que logo se “assentou que daí em diante como o mestre viesse e estivessem à lição todos os presentes falassem latim”.


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Vamos corrigir esse problema