Capítulo VII- A reforma protestante e o ensino. atividades e conceções pedagógicas de Lutero, Melanchton, Trotzendorf e João Sturm

Contemporaneamente à expansão do Humanismo, e sob certos pontos de vista com ele relacionados, produziram-se nalguns países movimentos de reforma religiosa, mais ou menos afins, cujo desenvolvimento influiu na organização escolar e na didática, importando considerar especialmente o que é designado comummente de «protestante» ou «evangélico», diretamente ligado à doutrinação de Martinho Lutero (1483-1546).      

Pela intranquilidade que se seguiu ao rompimento com a Santa Sé, o qual determinou a perda de privilégios pontifícios, de prebendas e de benefícios eclesiásticos, e com ela o abandono de cátedras e a emigração de professores, pelo ardor das controvérsias teológicas, pelo desapreço dos recursos naturais do espírito humano e pela crítica do teor da cultura tradicional e da audiência que as escolas rendiam a Aristóteles, a Reforma luterana suscitou de início uma crise escolar, mormente depois da condenação de Lutero pelas Universidades de Colónia e de Lovaina e pela Sorbona, a ponto de haver diminuído notavelmente a frequência das Universidades alemãs e de Erasmo ter inculpado o reformador pela decadência a que conduzira o ensino das diversas disciplinas.             

Sem embargo, as exigências culturais e as da preparação de pastores, o impulso do sentimento germânico, que deu vigor à expansão da Reforma luterana, o valor que os reformados, muito principalmente Melanchton, reconheceram à educação, se, por um lado, impuseram o repúdio de algumas tradições docentes, por outro, determinaram a reorganização do ensino em ordem à ideia da educação para todos e à coordenação do credo religioso com o saber profano. No ensino ginasial e no superior, a inovação consistiu, fundamentalmente, na conciliação com o humanismo letrado, tanto mais necessária quanto é certo que o primado da Escritura e consequente recurso direto aos textos sagrados se consideravam essenciais ao conhecimento do Cristianismo primitivo; e no ensino elementar, que fomentou, a obra mais saliente consistiu na integração da língua materna no plano formativo, como consequência de um credo que se dirigia aos fiéis na língua nacional. Produziu-se, assim, com a Reforma luterana, um movimento pedagógico de sentido positivo, caracterizado pelo apelo às autoridades civis no sentido da fundação de escolas; pelo estabelecimento de condições que conduziriam ao monopólio escolar do estado, mormente no ensino universitário, pois a perda da validade universal dos graus académicos, em consequência da separação da Igreja Católica, determinou o cerceamento da relativa autonomia tradicional das Universidades e a nacionalização das instituições universitárias; pela proclamação do princípio da universalidade da instrução e pela integração das humanidades no plano educativo.

É vulgar radicar-se a origem da escola primária elementar, como a conhecemos, na Reforma protestante; os factos, porém, inclinam antes a admitir que a Reforma fez perder ao ensino elementar o carácter meramente preparatório de um ensino ulterior, consignando-lhe como fins primaciais a instrução religiosa e a possibilidade de proporcionar a todos a leitura direta do Evangelho. Por isso, traduziu Lutero a Bíblia para a língua alemã, redigiu nesta língua dois catecismos e reclamou a generalização do ensino da língua materna como língua inicial do estudo, ao contrário da tradição medieval e da humanista, que adotaram o da língua latina.

Foi no Würtenberg que, em 1559, teve início a criação de escolas elementares com o ensino na língua materna, da religião, da leitura, da escrita e do canto, seguindo-se-lhe em 1569, o Brunschwig e, em 1580, a Saxónia. Weimar foi o primeiro Estado que estabeleceu a obrigatoriedade deste ensino.

Na conceção e na realização destas aspirações e objetivos, ou mais propriamente na efetivação das exigências pedagógicas desentranhadas pela Reforma, são de notar, principalmente, Lutero, Melanchton, Trotzendorf e João Sturm.

Martinho Lutero ensinou Dialética e Física na Universidade de Witenberg em 1508 e, após o seu doutoramento em Teologia, em 1512, leu e explicou as Epístolas de São Paulo. Possuía, pois, experiência discente e docente, mas foram as exigências da predicação e da controvérsia que direta e imediatamente o conduziram à consideração de alguns problemas pedagógicos. Dos seus escritos avultam, sob este aspeto, a epístola Aos príncipes cristãos da nação alemã (1520), na qual ataca o ensino tradicional das Universidades e reclama reformas, designadamente a abolição do Direito Canónico e a revisão do Direito Civil; o Apelo aos conselheiros de todas as cidades da Alemanha para que instituam escolas cristãs (1524), no qual afirma, pela primeira vez, que a organização e manutenção do ensino cumpre ao poder civil; as Instruções aos visitadores dos pastores da Saxónia do Eleitor, redigidas por Melanchton mas aprovadas por ele em 1528, e alguns Sermões, designadamente sobre a vida matrimonial (1519) e sobre a necessidade de os meninos serem mandados à escola (1530).

É nestes escritos que se encontram as mais significativas ideias pedagógicas de Lutero, cuja mente sentiu vivamente a importância 'da educação, chegando a dizer que no dia em que já não pudesse fazer prédica abriria escola; se a religião deve constituir a base da educação, o êxito duradoiro da Reforma aparecia-lhe ligado à escola, cabendo, portanto, ao mestre, depois do pastor, o lugar mais relevante na formação e no destino da sociedade.

A seu juízo, a família é o lugar próprio da atividade formativa, mas porque ela não pode por si só levá-la a cabo plenamente, impõe-se a colaboração da Igreja e do Estado na obra da educação, que deve ter por centro a religião; sem bons mestres não há vida moral perfeita, pois quando o ensino é mau não só as trevas da ignorância se alargam como entra em crise a própria religião. As famílias, a Igreja e o Estado tornam-se, assim, responsáveis pelo destino da educação; daqui, a importância da formação e do recrutamento dos mestres e a conceção do ensino como serviço público e o correlativo princípio da obrigatoriedade escolar, o qual importa para o Estado a obrigação de custear o ensino e o direito de constranger as famílias a mandarem os filhos à escola para prosseguimento da instrução religiosa.

Lutero não distinguiu claramente a instrução elementar da secundária. No seu Plano, o ensino religioso ocupa primeiro lugar e a escola continua a ser a escola latina, tanto mais que considerou o conhecimento das línguas sábias (latim, grego e hebreu) essencial para a cabal explicação e comentário da Bíblia. Nas matérias de estudo, além do ensino da religião e das línguas, deu lugar à história, ao canto, à música e às matemáticas. No Apelo aos conselheiros de todas as cidades da Alemanha referiu-se, como que prospectivamente, à escola popular, na qual o ensino diário, de uma ou duas horas, da religião, da leitura, da escrita e do ábaco, se ministrava na língua materna em regime de coeducação, com tempo livre para a aprendizagem, fora da aula, de um ofício.

As conceções pedagógicas de Lutero são, em boa parte, as do meio em que viveu, nem sempre sendo fácil discriminar o que lhe é próprio do que radica na sugestão alheia, especialmente de Melanchton; no entanto, os historiadores coincidem, de modo geral, em reconhecer que ele foi o primeiro a propugnar o princípio da obrigatoriedade escolar, a dar fundamento ao monopólio escolar do Estado e, porventura, a formular a noção de que o ensino popular elementar tem fim próprio, não sendo apenas o primeiro passo para estudos mais elevados.


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