O Homem (1892-1958)

1. Cumpriu-se no dia 10 de Junho de 1992 um século sobre o nascimento de Joaquim de Carvalho, figura ímpar da Universidade portuguesa e personalidade das mais ricas e originais da nossa cultura. Historiador da Filosofia, pensador e professor, investigador e crítico, Joaquim de Carvalho deixou em todas as disciplinas que cultivou a marca da sua inteligência poderosa e do seu estilo inimitável. Pode documentar-se na sua vasta obra um grande respeito pela historicidade do pensamento, em cuja expressão está consignado o sinete específico da humanitas. Como o historiador das ideias, se recusou sempre a comprazer-se no hedonismo psitacista de um jogo dialético sem dimensão humana, alguns plumitivos superficiais já lhe negaram a dignidade de filósofo, como se ser filósofo significasse tão-só ser criador de sistemas. É verdade que não foi filósofo se sê-lo quer dizer ensimesmar-se em jogos conceptuais de uma vazia escolástica. Mas quem, com fundamento sério, ousará negar a historicidade do pensamento original? Investigador de ideias encarnadas, ele as questionou e inquiriu em todas as épocas de pensar histórico valioso, desde a Idade Média e o Renascimento até ao século XX: na metafisica medieval das sumas, na liberdade radiosa do Humanismo, no panlogismo de Giordano Bruno a Espinosa, na história da ciência moderna de Galileu a Newton, na irradiante claridade do racionalismo cartesiano, no pensar científico das Luzes, no idealismo germânico, na especulação kantiana e hegeliana, nas correntes fenomenológicas do pensamento contemporâneo.

Joaquim de Carvalho apostou-se também, contudo, em estudar a especificidade, para ele não duvidosa, de uma filosofia se não essencialmente portuguesa, pelo menos enraizada em Portugal e vinculada à alma portuguesa. Daí o seu interesse por Pedro Hispano, Suárez, Margalho, Pedro da Fonseca, Francisco Sanches, Uriel da Costa, Ribeiro Sanches, Antero de Quental e Teixeira de Pascoais. Desde a sua juventude concebera o projeto de erguer uma história da Filosofia em Portugal: as suas duas primeiras monografias, uma sobre António de Gouveia e o Aristotelismo da Renascença (Coimbra, 1916) e a outra sobre Leão Hebreu Filósofo (Coimbra, 1918) são dois trabalhos que se integram nesse vasto projeto que não pôde, aliás, por ter sido surpreendido pela morte em 1958, levar a bom termo numa obra coerente.

2. Joaquim de Carvalho foi também um mestre de patriotismo esclarecido, que não de nacionalismo estreito (antitético, este sim, de um humanismo universalista). Assistia-o a certeza de que os contrastes de ordem ideológica são suscetíveis de composição através do diálogo dos problemas e da pesquisa, prosseguida com boa-fé, das soluções. Confessou num texto dos seus 26 anos que o seu jacobinismo ardoroso fora vencido pela tendência contemplativa e pela curiosidade intelectual que o levara a uma vida de estudo e reflexão. Chegara, assim, a descobrir «que a atitude criticista é a atitude verdadeiramente filosófica».

O seu anticlericalismo significava apenas, como já escrevi  uma posição mental «de coerência exemplar com a sua visão de um poder civil independente de jurisdições eclesiásticas e de uma jurisdição eclesial não constrangida nem ilaqueada por compromissos de ordem política» com o poder.

Como homem de ideias e como cidadão, Joaquim de Carvalho professava um credo doutrinário liberal na lógica de um respeito e defesa dos direitos civis por parte dos que deviam ser responsáveis pelo governo da Pólis. «O meu porto — confessa em 1933 — é a Democracia Liberal». «O liberalismo — refere-se a uma doutrina de inspiração ideal e não de programação económica — é a única política de base filosófica generosa, criadora e fecunda, e não apenas por exclusão de partes, mas por fundamentos próprios». Na sua sinceridade, Joaquim de Carvalho não escondia que a consulta popular, sem uma garantia de liberdade, podia implicar riscos graves, bem patentes no exemplo então recente da Alemanha: «O exemplo da Alemanha de Hitler, ou seja a morte da Democracia pelas urnas — afirma num outro passo - é terrivelmente elucidativo». Só, portanto, uma conceção liberal do Estado podia, segundo ele, impedir as Democracias de perpetrarem o seu próprio suicídio como já me foi dado acentuar. Num artigo bem esclarecedor a tal respeito, inserto no Diário Liberal, observava cordata e lucidamente :

«democracia ou império do sufrágio e igualdade perante o poder sem Liberalismo é despotismo puro». Poder-se-ia talvez dizer que Joaquim de Carvalho se exprimiu assim num determinado momento da vida portuguesa, então pautada pelo autoritarismo do Estado. Dir-se-ia, porém, que o pensador político previra a objeção, pois também escreveu : «teoricamente, Liberalismo e Democracia não são termos sinónimos. Exprimem e significam respostas diversas a quesitos diversos da consciência política — a democracia indicando quem deve mandar legitimamente e o liberalismo consistindo numa rede de defesa contra o poder de quem manda». Era, em 1933, ainda a mesma ideia que o levara, em 1919, a escrever perante o infundado pretexto oficial invocado para extinguir ou desanexar a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e transferi-la ou instituí-la no Porto, expressando-se com viva indignação : «Os meus 26 anos, altivos, que não conhecem outra coação que não seja a da verdade, a do dever e do respeito às leis justas, é que nunca sacrificarão nas aras de qualquer «mosca da praça pública», em que falou o Zaratustra de Nietzsche». E continuava: — «Que a República se defenda, é justo; mas quando essa defesa vicia a atmosfera serena da cultura, estrangulando ou cilindrando o espírito, que é independência e liberdade, é abominável, tanto ou mais do que roubar a vida». Tinham passado 14 anos sobre estas palavras: o contexto da vida pública portuguesa havia mudado, da Democracia — sendo, não obstante, possível formular oficialmente uma acusação grave sem fundamento — para uma ditadura que não permitia a expressão livre das ideias. Joaquim de Carvalho continuava a pensar, porém, como cidadão, que na comunidade dos homens livres o espírito — que «é independência e liberdade» — devia defender, através de leis justas, a própria essência livre do governo democrático e liberal. Eu direi que, nesta sua conceção de cidadania, se impunha uma lógica rigorosa do pensador--humanista, do doutrinador animado por uma consciência moral.

3. Joaquim de Carvalho ia em breve sofrer uma prova muito dura. Administrador da Imprensa da Universidade desde 1921, realizara uma obra extraordinária de divulgação e de estímulo para o progresso da cultura portuguesa, obra à qual se renderam até alguns intelectuais que lhe eram hostis embora o respeitassem e admirassem. Pelo decreto-lei de 29 de Agosto de 1934, a Imprensa da Universidade que tantos e tão eminentes serviços tinha prestado à cultura portuguesa, era extinta por um governo de que faziam parte, como ministros, três professores da Universidade de Coimbra . Foi um dos maiores erros da ditadura e uma medida sob todos os aspetos retrógrada, que teve efeitos perniciosos para o desenvolvimento intelectual do País. O corpo docente da velha Alma Mater não protestou contra o obscurantismo que feria tão gravemente a instituição. No estrangeiro, todavia, professores universitários de prestígio, entre os quais Marcel Bataillon, exprimiram a sua tristeza e lavraram o seu protesto. A maior homenagem que poderia hoje prestar-se a Joaquim de Carvalho seria a de reinstituir a Imprensa da Universidade. É verdade que os Acta Universitatis Conimbrigensis procuraram depois timidamente, com recursos limitados, preencher o vazio. Joaquim de Carvalho prestou mais uma vez excelentes serviços à investigação sendo também responsável, com alguns seus colegas de magistério, por estas publicações. Mas a Universidade de Coimbra nunca mais voltou a viver, com a sua imprensa, o fervor intelectual dos fecundos anos de 1921-1933.


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