A obra

Espírito livre e interrogativo, na própria natureza inconclusa dos seus muitos debuxos dialéticos com propostas de explicação da História, Joaquim de Carvalho deixou uma obra que não podia ser horizontalmente espraiada em certezas, nem verticalmente construída como uma catedral monolítica de dogmas: eu diria que nesta sede insaciável de interrogações e de perguntas reside um dos seus mais estimulantes encantos. Às vezes não esconde o fervor de uma adesão intelectual entusiástica, no imediatismo das suas leituras e interpretações, como, por exemplo, nos estudos que consagrou a Hegel e a Husserl. O seu amor a Espinosa foi mais duradouro e intimamente mais movido por urna simpatia de confluências profundas. Se estudou a fundo a Ética, tenho a certeza de que só a morte o não deixou escrever o texto fundamental que se esperava sobre o Tratado Teológico-Político.

Em 1916, aos 24 anos, Joaquim de Carvalho já demonstra no seu António de Gouveia e o Aristotelismo da Renascença qualidades invulgares no domínio de uma pesquisa que é ao mesmo tempo filosófica e exemplarmente discurso de pesquisa, expresso numa escrita literária valiosa. Quando, em 1947, nos ofereceu a admirável introdução ao Fédon, o pensador progredira muito na capacidade e na arte do filosofar e o escritor na limpidez cristalina do seu estilo literário.

A reflexão filosófica é, para ele, ato crítico, no percurso racional perpetuamente desperto. Mas a especulação conceptual não pode dispensar a atenção vigilante às conexões que enraízam as ideias na humanitas.

A «crítica portuguesa» não podia compreender a perenidade de uma pesquisa essencial ao mesmo tempo cristalina e rigorosamente histórica porque uma tal investigação foge aos nossos modelos de psitacismo, todo inchado de chavões verbais e pseudamente conceptuais que nada significam e nada exprimem. Quantos desses plumitivos não julgam ser filosófico o que não entendem! Joaquim de Carvalho não podia, portanto, andar nas bocas de um mundo superficial e brilhante, mas oco, vazio de substância, comprazendo-se apenas no falso ouro ou ouropel de congeminações palavrosas. Não conseguiu compreender que o Mestre de Coimbra está voltado substantivamente para coisas essenciais. Coisas essenciais e — digamo-lo, porque é exato — portuguesas.

O amor de Joaquim de Carvalho a Portugal, o seu patriotismo está sempre presente no que escreveu. Mesmo nos seus estudos sobre Leibniz e Espinosa, Leão Hebreu e Galileu, Hegel e Husserl, sem já falar, como é óbvio, nos contributos que consagrou a Camões, a Antero de Quental, a Teixeira de Pascoais.

O seu estudo sobre Leibniz é a primeira pesquisa de síntese elaborada entre nós acerca da abertura do filósofo ao pensamento português da Escolástica (sobretudo às Institutiones dialecticae de Pedro da Fonseca), à obra jurídica de António de Gouveia, ao Quod nihil scitur de Sanches, ao Jerónimo Osório que a Europa leu em latim e noutras línguas já no século XVI e que tanto influenciou Montaigne, à obra matemática de Pedro Nunes, ao que os Portugueses fizeram por divulgar a civili­zação chinesa no Ocidente. Leibniz colheu da nossa cultura — escreveu Joaquim de Carvalho — factos, ideias, dados, sugestões, enquanto a inteligência portuguesa conheceu nos seus escritos e no seu pensamento o que mais importava para a pesquisa intelectual, alento especulativo, estímulo problemático e ideias normativas.

3. O último trabalho de Joaquim de Carvalho, interrompido pelo seu desaparecimento em 1958, foi um importantíssimo esboço da História da Educação, o seu canto de cisne que bem demonstra como o professor — porque se trata de um texto para os seus discípulos — soube dar uma derradeira prova da sua capacidade de teorizar numa síntese histórica valiosa. E ensinando.

Não é possível referir aqui o que ele criou e inovou nos seus estudos sobre Pedro Nunes — que no Tratado da Esfera, seis anos antes de Copérnico, continuava a ser inflexivelmente ptolemaico, sabendo, porém, pôr ao serviço das navegações o seu imenso saber matemático e astronómico —, sobretudo ao pôr em evidência que foi o amor veri­tatis que o levou a pôr em causa os erros de um mestre acatado do Collège de France, no De erratis Orontii Finmi. A nenhum grande texto renascentista, mesmo na área científica, Joaquim de Carvalho foi estranho, pois não ignorou o interesse da especulação de Lucca Pacioli no Summa de arithmetica, tratado igualmente importante para a mate­mática, a contabilidade e as regras da pintura, às quais teria sido sensível Piero della Francesca.

Portugal e a nossa cultura estão sempre presentes na obra de Joa­quim de Carvalho, mesmo quando reconhece que o Quod nihil scitur era explicável na tradição do saber aristotélico; que Galileu, cujo reflexo em Portugal estudou, representa na história da ciência europeia o trânsito para uma via de pesquisa e de descobertas experimentais; que em Newton, projetado entre nós na obra de Jacob de Castro Sarmento, é possível estabelecer o 3.°momento da história de uma ciência moderna sem um conflito entre a razão e a fé, pois um Deus de amor palpita num mundo racionalizado e ordenado, num cosmos habitado pelas suas criaturas.

Antero de Quental foi um dos seus mais cultivados amores intelec­tuais e se na sua poesia procurou descobrir o sulco de influições germâ­nicos, soube reconstituir-nos com rigor e imaginação disciplinada o percurso das suas interrogações e das suas dúvidas metafísicas.

Em Teixeira de Pascoais, por uma pesquisa fascinante dos ele­mentos cósmicos e antropológicos que definem a evolução da suapoesia, Joaquim de Carvalho mais uma vez entendeu surpreender uma expressão do génio lusíada, que se identifica por antonomásia com a poesia de Camões.

Joaquim de Carvalho foi, ao mesmo tempo, uma inteligência filosófica e uma sensibilidade religiosa. Não importa que haja sido estranho a formas estabelecidas de ortodoxia eclesiástica. Quando na Imagem da Vida Cristã, na dialética que é busca de uma suprema finalidade por parte de Frei Heitor Pinto, dialética que é, em cada momento da consciência vital, um devir para a morte, o crítico se apercebe de que, nesse texto, tudo está subordinado aos fins supremos, não se deixará de compreender com que simpatia se sublinha este aspeto da Imagem, ainda que o nosso exegeta entenda que não se trata de diálogos platónicos, como, aliás, Heitor Pinto pensava. Este pendor de uma inteligência que orgulhosamente, altivamente se julga racionalista, deixa-se seduzir pelo que em Antero e em Pascoais mais se insinua na via de uma religio que é mistério.

O verdadeiro canto de cisne de Joaquim de Carvalho não é, como afirmei há pouco, o seu notável esboço de uma História da Educação, mas um texto sobre a «Compleição do patriotismo português», lido no dia 10 de Junho de 1953 no Gabinete português de Leitura do Rio de Janeiro. Não se trata de uma interpretação ou leitura de «Os Lusíadas», mas sim do sentimento de amor à pátria e à família, no transterro de um exílio, «sem o qual se não compreende cabalmente a épica camoniana», como escreve. Joaquim de Carvalho desapareceria deste mundo cinco anos depois. A sua reflexão é uma pequena obra-prima de análise intelectual e poética. O patriotismo, para o transterrado, «é essencialmente, como diz, um nexo que liga a consciência do indivíduo à totalidade dos seus compatriotas e à história pretérita e principalmente futura do país». Como não relacionar esta reflexão com o breve texto sobre «Camões e a consciência nacional» de 1939?


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