Carta-Prefácio

Ex.ª— Senhor Manuel Ramos de Oliveira

Quando me convidou para prefaciar a presente monografia histórico--descritiva do concelho de Celorico da Beira, cujas derradeiras páginas acabo de ler, hesitei, por escrúpulo, em aceder a tão honroso convite.

Advertia-me a voz da consciência que eu não poderia apreciá-la devidamente, pois, como todos os trabalhos da sua índole, ela brotava a um tempo do saber, que investiga e pondera, e do amor à terra natal, que incita e comove; como poderia julgá-la e captar-lhe a vibração emotiva, se nunca lidei com os arquivos documentais de Celorico, se desconheço as terras celoricenses, que jamais visitei, e se, afetivamente, nenhuma tradição familiar me recorda a labuta nesses campos ou a derradeira jazida de meus humildes ascendentes?

A reflexão, porém, venceu o ímpeto inibitório da primitiva impressão; pensei que se não podia criticar o seu livro, isto é, contrastar os seus juízos e informes de história local com os resultados da minha investigação pessoal, a experiência e o trato de assuntos mais ou menos congéneres autorizavam-me a apreciar-lhe a índole e significação. Por isso, aqui me tem, sinceramente, com palavras simples e desataviadas, a dizer-lhe o que penso.

Em primeiro lugar, cumpre-me reconhecer e admirar o seu esforço. Visiono as dificuldades de toda a ordem com que constantemente tropeçou para recolher os materiais sobre que assenta a construção do seu livro; sem predecessores que lhe ministrassem copiosa documentação, desprovido localmente de acessíveis recursos bibliográficos e fontes de consulta, ninguém de ânimo reto pode regatear louvores ao seu esforço, tanto mais admirável quanto é certo ser o esforço de um autodidata, que sem mestres, mentores ou guias levou a cabo tão meritória empresa.

Se o seu esforço se me afigura admirável, o objetivo que se propôs atingir não é menos digno de aplauso e reconhecimento.

Desejou V. recolher as esparsas e ignorados notícias do passado da sua terra e, ao mesmo tempo, descrever-lhe minuciosamente o presente, para que este sobreviva na memória dos seus conterrâneos; que é isto senão radicar e afervorar pelo conhecimento que ilustra e ensina o amor à terra--mãe, fundamento do patriotismo?

Disse Herculano que «o mister de recordar o passado era uma espécie de magistratura moral e uma espécie de sacerdócio, que todos os que podiam e sabiam deviam exercitar, porque não o fazer seria um crime».

Cumpriu V. na medida das suas possibilidades e no âmbito dos seus afetos o voto do grande Mestre, sempre atual e vivo; e cumprindo-o, concorreu para robustecer o fio ténue e sempre precário da continuidade histórica, missão suprema do nosso professorado, seja qual for o grau de ensino que ministre.

Trabalhos como o que empreendeu e dignamente levou a termo podem ser realizados de vária forma e com diversa orientação; basta atentar na exuberância atual das monografias locais, cujo carinhoso cultivo é testemunho seguro e notável da nossa vitalidade patriótica.

Sem ensaiar, sequer, uma classificação, penso que podemos enfeixar os estudos locais, tal como se têm desenvolvido ultimamente, em dois grandes grupos: o dos repositórios de factos de toda a ordem, interessando a localidade ou a região, do qual considero modelo e paradigma as monumentais Memórias histórico-arqueológicas do distrito de Bragança do insigne e venerando P. e Francisco Manuel Alves, Reitor de Baçal, e o das descrições do desenvolvimento urbano e vida íntima local, de que são tipo os Materiais para a história da Figueira nos séculos XVII e XVIII do meu sábio conterrâneo Dr. António dos Santos Rocha.

A sua monografia participa daquele grupo; é essencialmente um repositório de notícias do passado de Celorico, sem esquecer os acontecimentos da história geral portuguesa que se enlaçam com a localidade, e dos elementos que atualmente singularizam o concelho, desde a organização administrativa à descrição das respetivas atividades de toda a ordem. Na messe abundantíssima das notícias que tão diligentemente coligiu e que constituem, por assim dizer, uma enciclopédia celoricense, há dados valiosíssimos para o estudo da história moral, económica e política do nosso País, cujo conhecimento profundo se não pode lograr sem a base sólida e apurada das manifestações locais. É possível, porventura o exame, ainda não tentado, infelizmente, da nossa geografia moral e política, das variações dos costumes e da persistência e vicissitudes das opiniões cívicas, sem o conhecimento prévio e monográfico de cada urbe ou região?             

Sob este ponto de vista, o seu livro ultrapassa, e muito, o âmbito concelhio, não hesitando em lhe vaticinar o préstimo que vai dispensar a eruditos e investigadores.          

A brevidade desta carta não consente a individuação de tais informes; no entanto, permito-me salientar a descrição dos usos e costumes, o elenco do adagiário e a publicação do Senatus Consulto (pág. 77) atribuído ao gracioso autor da Fastigínia, Tomé Pinheiro da Veiga, cujas ironias e chalaças dissimulam o quadro crítico da situação de Portugal dezasseis anos antes do glorioso movimento da Restauração.     

O seu amor à terra-mater não se deteve apenas na contemplação do passado; olha prospectivamente para o futuro, e que mais posso desejar-lhe senão que os seus votos e aspirações, como a fundação do Museu Municipal, se convertam em benéficas realidades?  

Felicitando-o pela admirável lição de amor à terra natal, que perduravelmente brotará das páginas do seu livro, aperta-lhe cordialmente as mãos o seu admirador,             

Joaquim de Carvalho

Figueira da Foz, 10 de Setembro de 1939.


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