O meu último encontro com Joaquim de Carvalho

1. O meu último encontro com Joaquim de Carvalho ocorreu em sua casa da Rua do Pinhal, Figueira da Foz, no mês de Agosto de 1954. Embora algum tempo antes tivesse sido afetado por dificuldades visuais, relacionadas com um descolamento da retina, Joaquim de Carvalho encontrava-se então, pelo menos na aparência, de perfeita saúde e na pujança da sua vitalidade física e intelectual. Tinha sessenta e dois anos. Recebeu-me com a maior cordialidade no seu escritório pejado de livros e mostrou-me, apoiados em cima da mesa, os textos filosóficos e literários de que se servia, marcados por tiras de papel, único referente temático para a sua privilegiada memória e suporte cultural para a sua reflexão crítica. Era um encanto ouvi-lo dissertar sem pedantismos, reduzindo o seu imenso saber à simplicidade do socrático diálogo em que empenhava o interlocutor, o qual, não podendo acompanhá-lo por não estar à sua altura, acabava por ser apenas ouvinte: só, de longe em longe, com efeito, ousava formular uma pergunta, respondendo-lhe logo o Mestre com uma profusão enorme de informações, situáveis em múltiplas áreas do conhecimento.

Falou-se de Pascal, cujo pensamento filosófico, científico e teológico Joaquim de Carvalho conhecia como ninguém, embora o interessassem menos do que a mim os problemas da fixação crítica do texto de Pensées e as questões relacionadas com a autoria do Discours sur les passions de l'amour então debatidas acaloradamente em França. Ele admirava a prodigiosa inteligência filosófica e matemática de Pascal, o seu esprit de géometrie e o seu esprit de finesse, mas era menos sensível à sua visão dramática do numinoso assim como ao seu propósito de erguer, com Pensées, um templo majestoso em que brilhasse o esplendor da Verdade, alcançada pela especulação geométrica e pela contemplação ascético-mística: a Verdade devia procurar-se, em seu entender, pela via luminosa da inteligência indagadora através de um razoamento dialético. Luminosidade racional, portanto, e não numinosidade metapsíquica, metarracional ou mesmo irracional.

Não posso hoje deixar de evocar, a propósito da obra pascaliana, um outro diálogo de sete anos depois, não com Joaquim de Carvalho pois já então havia desaparecido, mas com um filósofo francês, admirador como ele do pensamento cartesiano. Pierre Mesnard, com quem, em 1961, no Institut d'Études Supérieures de Ia Renaissance da Universidade de Tours, discuti demoradamente acerca dos escritos de Pascal, admirava o génio do autor de Pensées, mas não escondia a sua opinião segundo a qual, enquanto Descartes tinha construído obras acabadas que marcaram com um sinete indelével o pensamento moderno, Pascal deixara tudo fragmentário e incompleto. «Pascal a tout raté», afirmava sem nuances e com uma brutalidade bem pouco filosófica. Joaquim de Carvalho era mais compreensivo embora o interessasse menos a démarche espiritual do apologeta. Reconhecia que Pensées e as Lettres à un Provincial são o discurso de um génio dialético incomparável, mas só como textos valiosos da Língua e da Cultura os amava e apreciava. Pierre Mesnard não escondia uma espécie de antipatia frontal por um génio fulgurante que não teria sido dotado de fôlego, segundo ele, para levar a termo os projetos que a sua portentosa inteligência concebia.

Joaquim de Carvalho, sendo menos dado do que Mesnard aos estudos do Humanismo, era mais humano. Dessa sua humanidade testemunha o conselho que me deu depois da sua dolorosa experiência ocular : — «Poupe os seus olhos, pois são o que de mais precioso existe para um professor e um investigador. Não aceite que os seus estudos sejam impressos em letra miúda», acentuava, numa referência direta a um trabalho meu sobre Pascal que, por ser composto em caracteres minúsculos, não conseguira ler. «O nosso corpo — continuou em tom de exortação amiga —, sendo depositário do nosso espírito, não se limita a receber deste um influxo direto. Também exerce sobre ele a sua influência, ainda que suscetível de ser, se não anulada, pelo menos reduzida. As afeções corpóreas podem veicular influições sobre as vias da alma». E, sem transição, sublinhando: «Veja o próprio Pascal, a enveredar pelo caminho da espiritualidade depois de uma experiência frívola e mundana, e sempre submetido a achaques. Haveria que investigar se a doença não terá sido determinante pelo menos em parte para as suas opções místicas». Havia, nestas palavras, uma alusão aos eventos de ordem espiritual relacionadas com «a noite de fogo» que Pascal tinha como a da sua segunda conversão. Voltaire sentira-se movido a censurar o místico do Memorial «por coser amuletos no forro do colete» — como escreve — em vez de ter persistido na investigação matemática que o poderia

ter levado a descobrir o cálculo das probabilidades. Era evidente que Joaquim de Carvalho pesava também, ao exprimir-se assim, o influxo dos seus incómodos de saúde sobre o seu próprio percurso mental. Natureza de cepa camponesa robusta, voltado para a reflexão, possuía uma consciência moral que só se comprometera na ação laica de um apostolado cívico. Nunca fora impelido por afeções orgânicas graves a opções que não fossem as da sua própria vida de investigador e de cidadão de uma ideal república que então não existia como hoje não existe ainda em Portugal. O misticismo não era nem nunca tinha sido o seu caminho nem a Igreja (católica ou qualquer outra) podia convertê-lo a um proselitismo que não fosse o da sua fé democrática e do seu desejo de melhorar, pela educação, os cidadãos organizados numa sociedade liberal de progresso.

Depois de aproximadamente meia hora de diálogo, Joaquim de Carvalho desejou mostrar-me a sua biblioteca. Precedia-me em passo elástico e decidido. Pude observá-lo de perto: vestia com simplicidade umas calças de pano escuro que caíam sem rigidez sobre umas botas fortes com que passeava decerto, na «quinta» que ladeava a casa, e aonde não tive de o acompanhar por falta de tempo. Um casaco de fazenda ligeira envolvia-lhe o peito robusto. O sorriso com que acompanhava a dicção era de uma cordialidade aberta e levemente irónica, sobretudo quando aludia a pessoas ou a eventos que não mereciam a sua simpatia. Nunca lhe ouvi, porém, um reparo menos elegante a intelectuais ou políticos por quem todos sabiam que não morria de amores. Atenuou mesmo a minha crítica porventura ingenerosa em relação a um universitário muito catedrático que era conhecido pela sua intransigência de integralista afeto ao antigo regime mais ainda do que à realeza constitucional.

Percorrendo com o olhar as estantes, ia-me indicando livros e formulando juízos que eram verdadeiras lições sobre aspetos da problemática neles focada. De vez em quando lia-me a dedicatória de uma grande figura da ciência europeia, sem excluir a portuguesa. Lembro-me de que Erasme et l'Espagne de Marcel Bataillon foi uma das obras que mereceram os seus elogios tanto ao grande humanista do século XVI como ao seu insigne estudioso do século XX a quem, mais tarde, eu disse um dia em Paris da admiração que lhe votava Joaquim de Carvalho. Eu escutava o Mestre com o enlevo deslumbrado do discípulo atento que tudo procura reter na memória. É-me, portanto, possível lembrar até os mais insignificantes pormenores, para os arquivar nesta singela homenagem evocativa.

2. Terminada a visita, Joaquim de Carvalho insistiu em acompanhar-me até ao limiar da porta. Já na rua, prolongou ainda a conversa, aludindo agora a problemas da vida política portuguesa de então e fazendo-o sem acrimónia e com a moderação do sábio distante da ação social mas atento aos interesses mais altos da comunidade em que se integrava. Já me foi dado referir alhures esses propósitos, os seus fundados reparos e sensatas observações.


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