Antero de Quental e a filosofia de Eduardo de Hartmann

No curso cambiante da evolução espiritual de Antero de Quental o ano de 1875 marca o apogeu da crise interior. Com rapidez insuspeitada, dissolvem-se então na sensação de «suspensão de consciência» o lacre ideário da juventude (Odes Modernas, 1865, 2 edição, 1874) e o entusiasmo da ação militante (Conferências do Casino e apostolado socialista, 1871-1872). Um e outro subvertem-se e perdem o sentido perante o desespero metafísico do valor da existência.               

Como confessou o Poeta (14-5-1887) na carta autobiográfica a Wilhelm Storck, seu tradutor alemão, adoecera gravissimamente em 1874, e «a forçada inação, a perspetiva da morte vizinha, a ruína de muitos projetos ambiciosos e uma certa acuidade de sentimentos, própria da nevrose, puseram-me novamente e mais imperiosamente que nunca, em face do grande problema da existência. A minha antiga vida pareceu-me vã e a existência em geral incompreensível. Da luta que então combati, durante 5 ou 6 anos, com o meu próprio pensamento e o meu próprio sentimento que me arrastavam para um pessimismo vácuo e para o desespero, dão testemunho, além de muitas poesias, que depois destruí (subsistindo apenas as que o Oliveira Martins publicou na sua Introdução aos Sonetos) as composições que perfazem a secção 4 (de 1874 a 80) do meu livrinho.

Conhece-as V. Exa., não preciso comentá-las. Direi somente que esta evolução de sentimento correspondia a uma evolução de pensamento. O naturalismo, ainda o mais elevado e mais harmónico, ainda o dum Goethe ou dum Hegel, não tem soluções verdadeiras, deixa a consciência suspensa, o sentimento, no que ele tem de mais profundo, por satisfazer. A sua religiosidade é falsa, e só aparente; no fundo não é mais do que um paganismo intelectual e requintado. Ora eu debatia-me desesperadamente, sem poder sair do naturalismo, dentro do qual nascera para a inteligência e me desenvolvera. Era a minha atmosfera, e todavia sentia-me asfixiar dentro dela. O naturalismo, na sua forma empírica e científica, é o struggle for life, o horror duma luta universal no meio da cegueira universal; na sua forma transcendente é uma dialética gelada e inerte, ou um epicurismo egoistamente contemplativo.

«Eram estas as consequências que eu via sair da doutrina com que me criara, da minha Alma mater, agora que a interrogava com a seriedade e a energia de quem, antes de morrer, quer ao menos saber para que veio ao Mundo.

«A reação das forças morais e um novo esforço do pensamento salvaram-me do desespero. Ao mesmo tempo que percebia que a voz da consciência moral não pode ser a única voz sem significação no meio das vozes inúmeras do Universo, refundindo a minha educação filosófica, achava, quer nas doutrinas, quer na história, a confirmação deste ponto de vista. Voltei a ler muito os filósofos, Hartmann, Lange, Du Bois-Raymond e, indo às origens do pensamento alemão, Leibnitz e Kant. Li ainda mais os moralistas e místicos antigos e modernos, entre todos a Teologia Germânica e os livros budistas.

«Achei que o misticismo, sendo a última palavra do desenvolvimento psicológico, deve corresponder, a não ser a consciência humana uma extravagância no meio do Universo, à essência mais funda das coisas».

Quando outros factos não existissem, bastaria tão sincera confidência para nos advertir que a crise interior, de certo modo contemporânea da eclosão da doença, se apresenta com causas e aspetos diversos, e, tendo sido transitória, foi vencida após anos de desespero e luta pelo misticismo, isto é, pelo absolutismo do Bem e da Liberdade.

Por que vias se insinuou no espírito de Antero o desespero metafísico e quais foram as primeiras expressões estéticas da agonia do mundo onde vivera sentimental e intelectualmente?

As respostas, embora coincidentes na conclusão, podem seguir rumo e métodos diversos.

Podemos sondar a constituição psicológica do Poeta e assistir ao drama íntimo e solitário da luta de sentimentos opostos, e podemos ainda, num plano diferente, observar como vacilara e ruíra o mundo da sua juventude, isto é, o complexo estável de respostas precisas aos problemas da vida e da existência. Antero fala na «sensação de suspensão da consciência», e o formoso dizer que significa senão a dor metafísica de quem não pode viver sem convicções nem ideias, isto é, num mundo consistente, e vê que as suas convicções se desgarram e perdem num pélago, sem norte?

Para o comum dos homens, «o mundo» nunca se desmorona; existe sempre, e assente sobre tópicos do pensar trivial, de toda-a-gente, resiste a tudo, e quando se abala pelo sismo das descobertas científicas, das aplicações práticas ou de novas conceções metafísicas, a agitação é uma peripécia mais ou menos curiosa.

As almas sensíveis como as de Antero, porém, nunca são teatro de peripécias. Para elas tudo é grave e sério, e viver é essencialmente lançar a ponte sólida entre a realidade vital da consciência e a realidade, não menos vital, dos outros e das coisas. E possível lançar a ponte? Vale a pena lançá-la?

A meio da vida, Antero sentiu profundamente a angústia das terríveis perguntas. Estudá-las, não é apenas compreender o drama duma consciência individual; é acima de tudo atingir na realidade viva a fonte donde brota a grandeza e a miséria do Homem.

As páginas que seguem não são escritas, porém, com tão nobre ambição. Modestamente, objetivamente, procuram apenas apurar um facto : a influência da filosofia de Eduardo de Hartmann, que Antero indica à cabeça das suas novas leituras, na eclosão da crise pessimista.

A produção literária de Antero durante o ano de 1875 foi escassa.        

Em prosa, escreveu apenas dois artigos de crítica na Revista Ocidental: um, ao livro de João Bonança, Da reorganização social. Aos trabalhadores e proprietários, no qual opõe a conceção romântica do revolucionário à do revolucionário moderno, científico; outro ao de Pedro Gastão Mesnier, O Japão: estudos e impressões de viagem.

Em verso, publicou ou escreveu os seguintes sonetos:

Mais Luz. Na revista O Cenáculo, n.º 1 (1875). Foi inserto nos Sonetos como pertencendo ao ciclo 1864-1874.

Elogio da Morte. Cinco sonetos publicados pela primeira vez na Revista Ocidental, n.° 1, em 15-11-1875, com a data de 1872- -1874.

O Convertido, in O Cenáculo, n.° 3 (1875).

À Virgem Santíssima. Publicado pela primeira vez in O Cenáculo, n.º 4 (1875), com o título Plena Gratiae e o subtítulo A Virgem Santíssima, Senhora Nossa.

Homo, in O Cenáculo, n.º 6 (1875).

O Inconsciente. Escrito em 1875, como se prova pela carta a Lobo de Moura publicada nas Cartas, pp. 353-354.

A data da publicação destes sonetos nem sempre corresponde à data da respectiva composição. Assim, o soneto Mais Luz foi colocado pelo organizador da edição dos Sonetos no ciclo 1864-1874, ao que pensamos justificadamente.

Os cinco sonetos, Elogio da Morte, que na edição dos Sonetos foram integrados sem fundamento no ciclo 1880-1884 (aliás, 1885), ao serem publicados na Revista Ocidental, como dissemos, levavam a data 1872-1874, o que nos prova terem sido escritos no decorrer de três anos. Os cinco sonetos na Revista Ocidental tinham cada um seu título, o 1.° Inania Regno; o 2., Nirvana; o 3.°, Beatrice; o 4.º, Ab Eterno e o 5.°, Eutanásia—, e além disso sabemos por uma carta a Lobo de Mouraque o segundo soneto —Nirvana —, foi escrito em 1872. Esta carta prova ainda que foi no mesmo ano de 1872 que Antero escreveu o soneto Virgem Santíssima. Podemos, pois, concluir que destes 10 sonetos, foram escritos em 1872, os sonetos A Virgem Santíssima e Nirvana; em 1873-1874, os quatro sonetos do Elogio da Morte; e os restantes nestes dois anos, muito provavelmente, salvo O Inconsciente, escrito em 1875.

 Apurada a cronologia, atentemos na índole e conceção filosófica de cada um.

O soneto Mais Luz

Amem a noite os magros crapulosos,

E os que sonham com virgens impossíveis.

E os que se inclinam, mudos e impassíveis,

À borda dos abismos silenciosos...

Tu, Lua, com teus raios vaporosos,

Cobre-os, tapa-os e torna-os insensíveis,

 Tanto aos vícios cruéis e inextinguíveis,

Como aos longos cuidados dolorosos!

Eu amarei a santa madrugada,

E o meio-dia, em vida refervendo,

E a tarde rumorosa e repousada.

Viva e trabalhe em plena luz: depois,

Seja-me dado ainda ver, morrendo,

E claro Sol, amigo dos heróis!

cujo ritmo espiritual nos leva a atribuir-lhe a data de 1871, exprime sentimentalmente a alacridade de viver. O poeta não sofre inquietudes, e é na claridade meridiana que simboliza o ideal da vida intensa, nobre e digna.

Do soneto Nirvana, o segundo do Elogio da Morte, escrito em 1872,

Na floresta dos sonhos, dia a dia,

Se interna meu dorido pensamento;

Nas regiões do vago esquecimento

Me conduz, passo a passo, a fantasia.

Atravesso, no escuro, a névoa fria

Dum mundo estranho, que povoa o vento,

E meu queixoso e incerto sentimento

Só das visões da noite se confia.

Que místicos desejos me enlouquecem?

Do Nirvana os abismos aparecem,

A meus olhos, na muda imensidade!

Nesta viagem, pelo ermo espaço,

Só busco o teu encontro e o teu abraço,

 Morte! irmã do Amor e da Verdade!

temos valiosos elementos de interpretação numa carta a Lobo de Moura. Ao enviar-lhe o manuscrito deste soneto dizia-lhe que «podia simplesmente ter por autor algum solitário, discípulo de Buda, que há 2500 anos, se assentasse à sombra do baobabe, e imobilizando o espírito num ponto único (segundo o preceito do Mestre), tivesse procurado fugir ao tormento supremo da consideração da contingência e fragilidade das coisas. É, porém, mais crível que o seu verdadeiro autor fosse algum filósofo alemão contemporâneo, que, desesperando de encontrar a razão última do ser no insuficiente naturalismo da filosofia moderna, se lançasse nos sonhos insondáveis do sentimento religioso primitivo. O que nos leva a optar por esta segunda suposição é encontrarmos no mencionado soneto certas alusões e aproximações, e uma lucidez racional que destoam da simplicidade profunda e do concretismo dos videntes antigos, e só convém à subtileza sábia dos neobudistas».

Esta autocrítica, evidentemente sincera, revela que o soneto exprime a atitude de quem evoca e descreve estados psicológicos de outrem. Sob forma literária pessoal abriga uma conceção impessoal, e portanto uma conceção mais ou menos livresca.

A mesma atitude impessoal, descritiva do coração humano, se revela nos sonetos Virgem Santíssima e O Convertido.

O soneto À Virgem Santíssima foi, como vimos, escrito em 1872 e publicado em 1875, posteriormente à publicação do soneto O Convertido: aquele viu a luz no n.º 4 de O Cenáculo, este no n.º 3. Sigamos, pois, a ordem da respetiva publicação, tanto mais que ignoramos o ano da redação de O Convertido, cujo texto é o seguinte:

Entre os filhos dum século maldito

Tomei também lugar na ímpia mesa,

Onde, sob o folgar, geme a tristeza

 Duma ânsia impotente de infinito.

Como os outros, cuspi no altar avito

Um rir feito de fel e de impureza...

Mas, um dia, abalou-se-me a firmeza,

 Deu-me rebate o coração contrito!

Erma, cheia de tédio e de quebranto,

Rompendo os diques ao represo pranto,

 Virou-se para Deus minha alma triste!

Amortalhei na Fé o pensamento,

E achei a paz na inércia e esquecimento...

Só me falta saber se Deus existe!

A publicação no Cenáculo foi acompanhada da seguinte nota reveladora da intenção do Poeta: «O autor propôs-se, nestes versos, descrever um estado singular de espírito, muito característico do nosso tempo, e não inculcar uma doutrina desoladora. Ninguém o pode tornar responsável por sentimentos que não são os seus, embora sejam muito reais, e com os quais é tão pouco solidário como o patologista com o estado mórbido que estuda e descreve.         

Seja isto dito para alívio das boas almas, que, por muito piedosas, se assustam facilmente».   

No número imediato da mesma revista, cujo diretor fora Cândido de Figueiredo, publicava o soneto Plena Gratiae — À Virgem Santíssima Senhora Nossa:

Num sonho todo feito de incerteza,

De nocturna e indizível ansiedade,

E que eu vi teu olhar de piedade,

E (mais que piedade) de tristeza...

Não era o vulgar brilho da beleza,

 Nem o ardor banal da mocidade...

Era outra luz, era outra suavidade,

Que até nem sei se as há na natureza...

Um místico sofrer... uma ventura

Feita só do perdão, só da ternura

E da paz da nossa hora derradeira...

Ó visão, visão triste e piedosa!

Fita-me assim calada, assim chorosa...

E deixa-me sonhar a vida inteira!

A emoção religiosa deste soneto, sem par na nossa poesia mística, tem sido considerada por alguns críticos como testemunho da conversão de Antero; porém, a sua publicação naquela revista, no número imediato e ao que supomos um mês depois da publicação de O Convertido, inculca a suspeita de ser a expressão literária do sentimento oposto ao do soneto O Convertido. E com efeito assim é. Para prova basta a autocrítica feita numa carta que Antero dirigiu a Lobo de Moura, ao enviar-lhe a cópia manuscrita do soneto: «Foi composto por um monge da Idade Média (aí pelo século XIII) na solidão suave-austera do Monte Cassino, um contemporâneo talvez do autor misterioso da Imitação de Cristo, e é dirigido à virgem-cheia-de-graça do sentimento cristão, a que mais tarde um pagão ilustre deu o nome de Eterno Feminino».

Cada um dos quatro sonetos até agora transcritos exprime uma conceção autónoma e diversa da vida, sem que o Poeta tome partido por qualquer delas. A sua atitude é espetacular, isto é, de observador do espírito humano, porém sem a indiferença do investigador, porque o comove a ânsia impotente do infinito e vive dramaticamente a carência duma resposta absolutista às dúvidas sobre a essência e o destino da vida. A ruína do credo da juventude, a cegueira espiritual do naturalismo físico, o conhecimento mais extenso e profundo da filosofia, geraram no seu espírito não a dúvida meramente intelectual, mas a sensação vital de suspensão da consciência. O que para ele estava em crise era a essência da natureza humana, e porque aborrecia o mobilismo e a transitoriedade procurava uma solução absolutista, mas quedava-se incerto perante o absolutismo naturalista da vida (Mais Luz), a renúncia do budismo (Nirvana), a passividade transcendentalmente incrédula (O Convertido), e o misticismo cristão (A Virgem Santíssima).

A síntese deste estado de espírito, isto é, de sensação da suspensão da consciência e de carência duma antropologia filosófica, encontramo-la no soneto Homo, publicado em 1875, na mesma revista O Cenáculo:

Nenhum de vós ao certo me conhece,

Astros do espaço, ramos do arvoredo,

Nenhum adivinhou o meu segredo,

 Nenhum interpretou a minha prece...

Ninguém sabe quem sou... e mais, parece

Que há dez mil anos já, neste degredo,

Me vê passar o mar, vê-me o rochedo

E me contempla a aurora que alvorece...

Sou um parto da Terra monstruoso;

Do húmus primitivo e tenebroso

Geração casual, sem pai nem mãe...

Misto infeliz de trevas e de brilho,

Sou talvez Satanás — talvez um filho

 Bastardo de Jeová — talvez ninguém!


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Vamos corrigir esse problema